SUS: Entre a hegemonia e a americanização

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Foto: Ian Waldie/Getty Images/AFP

A política de saúde persiste em sua trajetória hipercomplexa e contraditória. Apesar do gigantesco esforço dos governos, gestores e entidades comprometidas com o Sistema Único de Saúde (SUS), o intenso processo de mercantilização da assistência médico-hospitalar cria um vetor que tenciona permanentemente com o ideário reformista.
O denominado processo de “americanização” do sistema de saúde brasileiro conforma na prática um projeto contra hegemônico ao SUS. Esse processo envolve múltiplas dimensões e determinações: políticas, econômicas, tecnológicas e ideológicas. Passemos a uma análise mais acurada dessa complexa rede de determinantes em seu atual momento dentro do modelo de desenvolvimento brasileiro.

Em foco, a reconquista de hegemonia para o SUS. E para isso, torna-se fundamental considerarmos um novo conceito de sustentabilidade: aquele que incorpora aos componentes econômico, tecnológico, institucional e político, o cuidado com a saúde e a qualidade de vida no planeta.
Moacir Scliar em várias oportunidades destacava a qualidade da saúde pública brasileira no enfrentamento das doenças imunopreveníveis, nos resultados obtidos na redução da mortalidade infantil, do aumento da expectativa de vida, na redução da mortalidade por doenças cardiovasculares. Mas os novos desafios colocados pela tríplice carga de doenças (infectocontagiosas, crônicas e causas externas), pela dramática transição demográfica (em 2030 teremos mais brasileiros acima de 60 anos do que entre zero e 14 anos), pela transição do padrão alimentar e cultural (obesidade, diabetes, hipertensão), e pelas dificuldades estruturais de avançar na linha da determinação social da saúde, colocam novos e complexos desafios adicionais, em especial, recolocar a questão: como se produz saúde?
A “estratégia de reorientação setorial”, com o Programa de Saúde da Família, avança em termos de cobertura e complexidade (Nasf, Caps etc), mas não consegue se estruturar como única ou principal porta de entrada do sistema.
Percebe-se uma orientação que privilegia de certa forma a ação dos agentes comunitários, mas chamo a atenção da importância de uma forte base de clínica ampliada (médicos, enfermeiros e outros profissionais) que dê qualidade e resolutividade ao modelo respeitando e contando com a ativa participação e colaboração dos pacientes e seus familiares.
As iniciativas dos Ministérios da Educação e Saúde para o fortalecimento da formação de clínicos e especialistas em saúde da família, não parecem suficientes para reverter o vetor da hiperespecialização e da fragmentação na formação médica. A questão do trabalho médico se mantém como um dos mais complexos desafios. A possibilidade garantida pela constituição de múltiplos vínculos públicos e privados para o médico, onde a renda auferida em cada um desses espaços difere de modo importante, impede o estabelecimento de vínculos institucionais mais sólidos, carreiras de horizonte mais longo, dedicação integral a determinado serviço.
Para enfrentar esse novo cenário será necessário, por exemplo, construir uma nova institucionalidade para a administração pública. Os aspectos relacionados aos modelos de gestão continuam sendo motivo de polêmica e confronto entre gestores de diversos níveis governamentais e órgãos de controle.
O fato é que não conseguimos dar seguimento à construção de um novo modelo de macro governança principalmente para grandes redes assistenciais. Algumas iniciativas inovadoras como a da Bahia com a criação de uma fundação estadual para gerir o PSF devem ser mais bem avaliadas. Há aqui, de fato, um “mal estar” que com frequência coloca em choque a visão de quem está na linha de frente com visões das distintas corporações (exemplo: a decisão do governo federal de criar uma empresa pública para gerir os hospitais de ensino do MEC).
O mercado de planos e seguros cresce de modo sustentado fortemente alimentado pelo espetacular resultado das macro políticas das gestões Lula, ao ampliar fortemente a base do trabalho assalariado enquanto a capacidade de regulação da Agência Nacional de Saúde (ANS) esbarra nas limitações do marco legal e nas fragilidades do modelo das agencias reguladoras.
As iniciativas referentes ao denominado Complexo Econômico Industrial da Saúde são merecedoras de aplausos incluindo as referentes a introdução de políticas de gestão de incorporação de tecnologias em saúde.
Aspectos relacionados ao desenvolvimento da Reforma Psiquiátrica voltam à tona com a discussão das questões colocadas pelo consumo de drogas (principalmente o crack) e a polêmica opção pelas comunidades terapêuticas considerando que a rede de CAPS ainda está aquém do necessário.
Uma novidade ainda pouco percebida, mas considerada pela presidenta Dilma Rousseff, é a priorização da atenção integral à primeira infância, integrando iniciativas dos programas Brasil Carinhoso, Rede Cegonha e Estratégia Brasileirinhos Saudáveis (EBBS).
A primeira infância (da gestação aos seis anos) é considerada um período decisivo para o desenvolvimento do ser humano saudável, sob todos os pontos de vista: físico, mental e emocional. Entretanto, quando do lançamento da EBBS, em 2009, ao contrário de muitos países que já possuíam programas nacionais voltados a estas crianças – como Cuba e Chile -, o Brasil ainda não contava com uma politica semelhante no nível federal.
Trata-se de uma abordagem inovadora que integra saúde pública, educação e desenvolvimento social, considerando contribuições de campos diversos como neurociências e psicanálise. Este tipo de iniciativa visa antecipar questões de produção e promoção da saúde, de maneira a buscar caminhos inovadores de cuidado.

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A política de assistência farmacêutica avançou com o Farmácia Popular e a estratégia de uso da rede de farmácias como parceiras do governo no fornecimento de medicamentos subsidiados ou gratuitos. Porém, o elenco de produtos oferecidos ainda é limitado. Creio que essa é uma estratégia importante e que esbarra para sua plena consolidação na insuficiência de recursos financeiros.
Iniciativas importantes foram tomadas no aperfeiçoamento da gestão com a contratualização entre entes públicos e o início do processo de uma macro avaliação do desempenho da saúde. Houve críticas fundamentadas em relação à metodologia adotada para o estabelecimento de um ranking de desempenho para estados e municípios, mas a iniciativa deve ser aperfeiçoada.
No campo das relações entre publicidade e saúde pública, área de extrema relevância, pouco pôde ser feito principalmente pela postura omissa do legislativo em relação à publicidade de medicamentos, de bebidas alcoólicas e alimentos infantis.
Nos direitos sexuais e reprodutivos pouco se avançou, principalmente, sobre o aborto. Exceto pela histórica decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em relação à questão da anencefalia.

Desafios
O macro financiamento setorial continua como um dos principais desafios. Apesar do avanço em alguns aspectos da regulamentação da emenda constitucional 29, o subfinanciamento que perdura há mais de duas décadas, persiste como o principal fator que impede a qualificação e avanço do SUS.
Aqui, destacam-se as questões referentes à renúncia fiscal, subsídios variados ao mercado, co-pagamento de planos privados a funcionários dos três poderes, regulação por parte da Receita Federal do que pode ou não ser abatido do imposto de renda devido pelas famílias etc.
Mas, desafio mesmo, é pensar saúde como vida intensa e criativa, qualificada pelo desabrochar de plena potência das capacidades humanas. Fundamental, portanto, reunir esforços e construir alternativas à mentalidade conservadora e empobrecida que vê a saúde como ausência de doença e política de saúde limitada apenas à dimensão da assistência médica.
Nesta perspectiva, corremos céleres rumo a um processo de americanização nos afastando do incrível ganho constitucional que foi a saúde como direito de todos.

* José Gomes Temporão é ex-ministro da Saúde (2007-2010) e integrande da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva)
** Publicado originalmente no site Carta Capital.

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