Ferreira Gullar: um homem de muitas vertigens

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Em tempos de comunicação instantânea, redes sociais, vídeos, snapchat e outros, o tempo pode se tornar inclemente com quem se comunica através dos meios tradicionais – mesmo assim, o gosto pela leitura permanece. Algumas iniciativas de incentivo e fomento à leitura estão espalhados pela web, como o projeto releituras, que visa compartilhar extrato de obras de autores nacionais e estrangeiros, espaço aberto para novos autores, além de links para documentários raros.
Tratando especificamente de Ferreira Gullar, a morte do poeta não pode ser encarada como o ponto final de uma história, mas a continuidade para que a obra atinja novas direções. Muito se fala de Gullar, através de coletâneas, antologias, homenagens mas o grande público em si, ainda vê um nome desconhecido diante de tantos nomes. Gullar nascido José Ribamar Ferreira em São Luís do Maranhão, elenca aquilo que poucos ousaram durante a vida: ser poeta e cidadão em períodos tão sombrios da história política do país que só pelo medo e desconfiança, o calar seria a solução.
Em “Muitas Vozes” de 1999, encontramos o elemento filosófico e sensorial do autor, em combinação diante de uma época frágil onde as relações são artificiais e o mundo é nocivo para a própria existência, ele diz: - Meu poema é um túmulo, um alarido: basta apurar o ouvido!
Por mais que o conceito de poeta como fingidor de Pessoa nos oriente sobre a verdadeira vocação da maioria dos poetas, em Gullar essa artimanha cai por terra devido a incapacidade de sua obra de iludir, o mesmo vê no leitor, o juiz perfeito que sabe discernir aonde a linguagem pode conduzi-lo, bastando apenas a consciência ser despertada.
Ferreira Gullar transitou por diversas tendências artísticas e experimentou em si o impacto de cada uma, desde a poesia erudita até as vanguardas na arte brasileira ele deglutiu cada uma e tornou sua complexa obra acessível a qualquer leitor, seja ele habituado essa ou aquela tendência literária. Outro ponto interessante de ser observado, é a linha tênue entre imaginação e realidade na construção poética do autor. Em “traduzir-se” ele diz: uma parte de mim é todo mundo, outra parte é ninguém fundo sem fundo, que nos remete o quanto cada um pode ter de afeto, e de solidão.
A morte possui um envolvimento peculiar com a obra de Gullar, nela não há espaços para a idealização romântica, fuga dialética, ou luto; a morte é real estando em toda parte, seja na feira, na possibilidade de morte instantânea, ou em poemas homenageando artistas falecidos como Glauber Rocha e Clarisse Lispector. A morte é discípula do tempo como em “Bananas Podres” em que o autor de forma singela ‘narra’ a oxidação da fruta pelo tempo em exposição numa banca e compara a decomposição a um processo silencioso de falência dos órgãos. Por fim a morte nunca é subjugada em Gullar, ela é admirada, respeitada e aceita com resignação – algo que a veia nordestina de Ferreira Gullar nunca deixou a desejar.
O “Poema Sujo” é considerado até hoje um dos mais completos poemas produzidos, seja pela diversidade de estilos que passeiam pela narrativa, ou pela visceralidade do questionamento político em suas entrelinhas, o mesmo encerra uma fase e inaugura uma nova, onde a linguagem fácil e o tom político “chocam” o leitor de forma acidental.
Em 2011 Ferreira Gullar recebeu o prêmio Camões de Língua Portuguesa, e o Jabuti pela produção de “Em alguma parte alguma” livro de memórias pessoais sobre a literatura brasileira. Em dezembro 2014, depois de muita resistência, Ferreira Gullar assume a cadeira 37 na Academia Brasileira de Letras.
Nos últimos anos, em entrevistas e documentários, nota-se um questionamento do poeta com toda uma tradição de esquerda nas artes brasileiras além de críticas à luta armada durante o regime militar (1964-1985), e críticas pessoais ao ex-presidente Lula e ao PT, algo que gerou surpresa na época.
Gullar é atemporal pois sua obra e vida se moldam de forma única e constante. Mesmo com a boa cultura brasileira tentando sobreviver nos guetos, cada vez mais sua obra impressiona pela realidade e humanidade que transmite – restando apenas ser lida pela nova geração que se debruça sobre o smartfone.