Escândalos, negociatas, alarme social: A Espanha assaltada pela corrupção

Reveladas pela imprensa, as questões de enriquecimento pessoal envolvendo, especialmente, dois dos mais importantes funcionários do Estado Espanhol, o ex-governador do Banco da Espanha e o ex-diretor geral da Guarda Civil, lançaram o país na descrença e na revolta. O Partido Socialista, no poder há 12 anos, tem uma indisfarçável responsabilidade. Desde que esses escândalos e essas negociatas fragilizaram uma democracia bem jovem, revivem perigosamente o antiparlamentarismo e as nostalgias franquistas.

Por Ignacio Ramonet, junho de 1994

Sevilha, 6 de maio, 18:30 h. Sob as vaias dos operários das fábricas da Santana-Suzuki e Gillette em greve e de centenas de agricultores irados, uns 5 mil militantes socialistas chegam ao Palácio dos Esportes para assistir um encontro do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE). As eleições europeias de 12 de junho coincidem aqui com a eleição para a renovação do Parlamento Andaluz. Enquanto lá fora, uma violenta batalha opõe trabalhadores e policiais, um homem avança sozinho na imensa cena. Camisa desabotoada, sem gravata, de paletó escuro, Felipe Gonzalez, presidente do governo espanhol, exige imediatamente aplausos para “os operários da Santana que lutam por seus empregos”. Depois, com um tom grave, ele aborda o assunto que todo o auditório (e toda a Espanha) espera, o da corrupção que ameaça chegar a seu governo e arruinar seu futuro político: “assim que chegamos ao poder, em 1982, estávamos preparados para lutar em favor das liberdades e do progresso, mas não estávamos preparados para conviver com pessoas, vindas de nossos próprios quadros, que usaram suas funções na administração pública para enriquecer; pessoas fizeram a ganância passar a frente da preocupação com a solidariedade. Sinto um profundo desgosto e uma enorme vergonha por ter confiado em pessoas que não mereciam”.

Na véspera, em Madri, saindo de um longo silêncio, enquanto a mídia multiplicava durante oito dias as revelações sobre os escândalos que abalaram a Espanha, Felipe Gonzalez (durante uma entrevista coletiva acompanhada ao vivo por 5 milhões de telespectadores) afirmou: “não vou renunciar!” Em uma atmosfera de fim de reinado e no meio da mais grave crise política que o país enfrentou desde a tentativa de golpe de Estado do coronel Tejero (23 de fevereiro de 1981), Gonzalez respondia assim as demandas repetidas de muitos jornais e de dirigentes da oposição, José Maria Aznar, do Partido Popular (PP, de direita), e de Julio Anguita, da coalizão Esquerda Unida (comandada pelo Partido Comunista).
O que se passou desde 6 de junho de 1993, data da quarta vitória consecutiva do PSOE nas eleições legislativas? Por que Felipe Gonzalez perdeu sua aura de líder carismático e se tornou alvo de todas as críticas?

Socialistas transformados pelo exercício do poder

Havia, ainda, a recessão econômica que atingia a Espanha com mais força do que qualquer outro país da União Europeia. Setores inteiros como a pesca, a construção, a produção leiteira, os estaleiros, a siderurgia, o carvão, etc. se têm sido vítimas. Cerca de um quarto da população economicamente ativa está desempregada; várias empresas multinacionais (Suzuki, Gillette, Volkswagen) pararam de investir e já pensam em transferir suas fábricas para países onde o custo do trabalho seja menos elevado.

Mesmo que a desvalorização (25%) da peseta em 1993 tenha tido um efeito benéfico sobre as exportações e o turismo e que se estime que a taxa de crescimento para este ano vá ficar entre 1,5% e 2%, a crise é brutalmente sentida pela população. Especialmente depois do início dos anos 80 e, em particular, depois da entrada da Espanha na Comunidade Europeia em 1986, o crescimento tem sido forte e ininterrupto. O país conheceu uma espécie de “decênio glorioso”, de euforia econômica cuja apoteose foi alcançada em 1992, ano dos Jogos Olímpicos de Barcelona e da Exposição Universal de Sevilha.

A revelação em cascata de incríveis questões de corrupção lançou os cidadãos na estupefação e na cólera. Todos, mas especialmente os eleitores da esquerda que, durante os quarenta anos da ditadura franquista, tinham sonhado com a democracia, a justiça e a honestidade. “Dentre os sonhos de nossa geração, relembra o escritor Manuel Vazquez Montalban, não estava o de exercer o poder. E, se chegássemos a sonhar, nós pensávamos que transfomaríamos a cultura do poder; que jamais deixaríamos que o exercício do poder nos transformasse. Verificamos no momento, de modo muito violento, a quem serve esta cultura do poder: para permitir que seus principais representantes passeiem pelas galáxias e pelas cloacas tendo como salvo-conduto, todas as razões de Estado”.

Muitos cidadãos estão agora convencidos de que o exercício do poder transformou efetivamente os socialistas e corrompeu um bom número.

O sinal de alerta soou em 1991, quando o irmão do vice-presidente do governo da época, Juan Guerra, foi acusado de tráfico de influência. Desempregado em 1982, este militante socialista se encontrava, a rigor, no comando de uma considerável fortuna pessoal. O escândalo deveria provocar a renúncia de Alfonso Guerra, amigo de todas as horas de Felipe Gonzalez e chefe da “ala esquerda” do PSOE. Houve a seguir a questão da Renfe (a empresa estatal de estradas de ferro espanhola). O presidente (socialista) da empresa ferroviária, Julian Garcia Valverde, foi acusado, junto com outros responsáveis do PSOE, de ter favorecido o enriquecimento de intermediários privados, graças ao dinheiro público, pela compra especulativa de terrenos antes de torná-los objeto de desapropriação. Em meio ao escândalo, Garcia Valverde, nomeado Ministro da Saúde, teve que renunciar.

Enfim, o assunto Filesa (ainda não esclarecido) envenenou a atmosfera política. Este Centro de Estudos estava encarregado de elaborar, a um preço bastante alto, relatórios fictícios para as empresas proibidas de financiar, de modo oculto, o PSOE.
As coisas continuam degradadas após as revelações, em fevereiro de 1992, em relação ao affair Ibercorp. Esta empresa financeira, dirigida pelo ex-presidente da Bolsa de Madri, Manuel de La Concha, um “golden boy” na tradição dos anos 80, tinha ajudado uma lista de personalidades escolhidas a ganhar muito dinheiro (sempre não declarado ao fisco) e todas pertencentes àquilo que a imprensa chama de “beautiful people”, uma mistura de celebridades da alta sociedade tradicional, do “show-business” e das elites socialistas. Enquanto que, em nome do “realismo econômico”, o governo socialista reduzia os ganhos sociais, diminuía as (magras) aposentadorias dos trabalhadores, incentivava as demissões, instaurava um “salário mínimo para jovens” e demolia o estado de bem-estar social, as revelações do affair Ibercorp iriam emudecer os eleitores socialistas e chocar todos os democratas. Os piores pesadelos da história espanhola marcados durante séculos por uma aristocracia vampira voltavam a assombrar o espírito dos cidadãos. “Quando se pensa, disse Javier Ortiz, subdiretor do jornal El Mundo, que às vésperas de ganhar as eleições de 1982, com base na esperança de todo um povo, o PSOE proclamava ainda orgulhosamente seu principal lema glorioso: “cem anos de honestidade”!”

Num contexto exacerbado pela falência do Banco Banesto, de Mario Conde (o Berlusconi espanhol) e pelo pânico dos pequenos poupadores, os documentos publicados por El Mundo, nos últimos dias 5 e 6 de abril, a propósito do affair Ibercorp, tiveram o efeito de uma bomba. Eles tendem a provar que a fabulosa habilidade bursátil de de La Concha, baseava-se de fato em informações privilegiadas fornecidas por uma pessoa bem informada em razão de sua atividade profissional. Esta pessoa não é outra senão Mariano Rubio, governador do Banco da Espanha na época dos fatos! O homem que, entre 1984 e 1992, conduziu a política monetária do país dispunha de 6 milhões de francos em uma conta secreta, com os quais especulava visando o enriquecimento pessoal, sempre fraudando o fisco.

Ganhar dinheiro com o dinheiro dos outros

E enquanto a cólera se amplificava contra esses “milionários ladrões”, que alguns denunciavam a “cleptocracia à italiana” e reclamavam também, como na Itália, uma operação “Mãos Limpas”, um novo escândalo surgiu no início de maio, o qual, por sua enormidade, iria deixar o país em estado de choque. O jornal Diario 16 revelava que Luis Roldan, diretor-geral da Guarda Civil (com 75.000 homens e líder na luta contra o terrorismo) usou sua posição para acumular uma fortuna colossal.

Este antigo militante do PSOE, primeiro civil a comandar a polícia espanhola, recebia 8,5% sobre todos os trabalhos de construção de instalações militares. Em pouco tempo, Roldan acumulou uma fortuna pessoal de algo próximo de 200 milhões de francos, que ele aumentou sem parar remexendo alegremente os fundos secretos destinados às “operações especiais” contra o terrorismo; ele não hesitou nem mesmo a desviar uma parte das verbas destinadas pelo Estado aos órfãos das vítimas do terrorismo.

Com o andar das revelações, a opinião pública descobriu assustada que este “funcionário exemplar” possuía umas quarenta contas correntes em quatro ou cinco países, apartamentos luxuosos em Madri, Saragoza, Pampeluna, na Suíça, na Venezuela, no Chile e uma propriedade de sonhos no Caribe, na Ilha de Saint Barthélemy...

Atualmente foragido, Roldan concordou, em 3 de junho de 1994 em conceder uma entrevista ao jornal El Mundo (que naquele dia vendeu 790.000 exemplares), na qual, com cinismo, ele reconheceu os fatos e definiu sua filosofia: “eu fiz negócios como outros chefes de empresas. Os negócios consistem e ganhar dinheiro com o dinheiro dos outros”. E ameaçou o governo de Felipe Gonzalez de tornar públicos documentos comprometedores para uma parte da classe política...

Este escândalo, o de Rubio e o de de La Concha (atualmente preso) provocaram importantes demissões. Há ainda a do ministro do interior, Antonio Asunción, que reconheceu sua responsabilidade na fuga de Roldan; depois, o ministro da agricultura, Vicente Albero, que admitiu ter fraudado o fisco ao ocultar os juros (1 milhão de francos) de sua conta na Ibercorp. Também foram demitidos de suas cadeiras de deputados: Baltazar Garzon, tido como o “incorruptível” (uma espécie de juiz di Pietro espanhol) filiado no último ano ao Partido Socialista pelas mãos de Felipe Gonzalez e que denunciou a passividade do chefe de governo em face da corrupção; José Luis Coecuera, ex-ministro do interior e, sobretudo, Carlos Solchaga, porta-voz do grupo socialista no Parlamento, ex-ministro da economia e teórico (junto com Miguel Boyer, igualmente envolvido no affair Ibercorp) do “social liberalismo”.

Este ministro socialista que queria “modernizar o capitalismo espanhol” afirmava durante os anos 80 que a melhor política industrial era “não ter política industrial” e recomendava aos investidores estrangeiros que viessem para a Espanha, “o país do mundo onde se pode ficar rico mais facilmente”. Sem dúvida, Solchaga pensava como Guy Sorman que afirma: “na origem do capitalismo, estão os piratas. Primeira geração: piratas ou traficantes de escravos; a segunda geração quer ser respeitável; a terceira faz estudos e cria as fundações culturais. Os indivíduos podem ser egoístas, antipáticos e sem inteligência, mas o conjunto constrói uma sociedade que funciona” (1).

Em nome desta doutrina, os socialistas espanhóis decidiram enriquecer por todos os meios. O desprezo pelos valores éticos, o culto do dinheiro característico do boom econômico dos anos 80 estimularam, em particular no âmbito dos servidores do Estado, a avidez, a negociata, a prevaricação e a corrupção. “Os chefes de empresa foram postos frente ao seguinte dilema: renunciar a 50% da economia controlada pelo Estado ou entrar no jogo da corrupção”, denuncia Carlos Espinosa de lós Monteros, presidente do Círculo de Chefes de Empresas Espanhóis.

O desastre moral e a impressão de decomposição política (2) são enormes; os cidadãos avaliam, mesmo injustamente, que a corrupção política atual é maior que no tempo de Franco (3) ... Felipe Gonzalez afirmou que o tempo da arrogância estava encerrado e que se iniciava o do diálogo. Não existe maioria absoluta no Parlamento e só pode governar graças ao apoio dos nacionalistas catalães da Convergência e União (CiU) e do Partido Nacionalista Basco (PNV). Este apoio é objeto de trocas que reduzem o poder da administração central e aumenta a margem de autonomia da Catalunha e do País Basco. A estratégia do CiU e do PNV (partidos de direita) visa transformar a Espanha em um Estado Federal. O atual enfraquecimento do PSOE e de Felipe Gonzalez seve a este projeto histórico, mas não agrada à principal formação de direita, o Partido Popular (PP), herdeiro sociológico do franquismo que perdeu por muito pouco a vitória eleitoral nas legislativas do ano passado e que reclama alto e forte por eleições antecipadas. As pesquisas indicam uma derrota (a primeira em 12 anos) dos socialistas em 12 de junho.

Não se pode descartar, agora que o sistema democrático sai enfraquecido, o risco de desmantelamento do Estado e de violência social. Refletindo um sentimento generalizado, o antigo filósofo José Luis Aranguren, com indiscutível autoridade moral, confessa sua consternação, mas sente surgir um reinício: “estou vivendo uma grande tristeza, disse ele ao ver a maneira como estão massacrando o entusiasmo das pessoas. Quem poderia imaginar que toda a esperança, toda a ilusão coletiva iria acabar assim O pior, é que não existe solução alternativa. Ou então, a esta situação espanhola tão decepcionante, tão deprimente, eu não vejo outra opção à revolta da juventude. Uma revolta seria sustentável. Quando digo sustentável, eu penso em inevitável. Pois tudo isto precisa ser transformado”.

Ignacio Ramonet
Diretor do Monde Diplomatique de 1990 a 2008

(1InfoMatin , 11 de maio de 1994;
(2Cf. artigos de Juan Luis Cebrian, le Monde , 12 de maio de 1994, e El Pais , 24 de maio de 1994;
(3El Mundo , 1º de maio de 1994.

Tradução: Argemiro Pertence

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