APRENDIZ DE DIVAGAÇÕES

Imprimir
O teto, acima de mim,
Jaz sólido:
Ainda sim,
Transidamente,
Eu o olho.

Escalavrado pela impotência,
Pelo vácuo, pelo tédio
De afluirmos,
Deliberadamente,
Ao estuário da vida,
Deixo-me domar
Pelo sobrepujante cavalgar
Do heliocentrismo da elegia.

Pesarosas lágrimas silentes
E invisíveis rolam-me
Por sobre a epiderme:

Crianças ao bel-prazer
Do ódio como agasalho
Da devoluta alma,
Devoluta pele e osso,
Devoluta mente,
Devoluto corpo
Sorvem a seiva da ira
Contra o Éden misericordioso.          

A eloquente voz de um homem
Esculpe, esmerila e grita
A oração: --- Sim, nós podemos, irmãos!

No entanto,
Será que esta sentença
Ganhará eco de materialização
No reino, hein, das vis-metais mentes e preconceituosos corações?   

Não,
Tal convicção não acalenta
Meu escaldado ente-razão,
Mesmo quando agora
O contemplo segurando,
Firmemente, o poderoso cetro
Que norteia o rebanho
Das extáticas cabeças
Que, pelo obliquo caminho, vão.  

Na verdade,
O que, cotidianamente,
Vejo é a construção
--- cada vez mais célere ---
De megalópoles quatro palmos
Abaixo do chão.

Na verdade,
O que, cotidianamente,
Vejo são vales de incauto sangue derramado
Regozijarem os galhardos iconoclastas
Da sábia vida prolífica:
O escárnio á longevidade da sua celebração, sua mádida magia!

Testemunho
Querelas que libam,
Avidamente,
O vinho da ganância por poder
Abrir sulcos e crateras
Na mansão do nosso altruísmo.

Testemunho
O gradiente do egoísmo e da maldade
Açambarcar-se, avolumar-se,
Caminhar de mãos dadas com a ubiquidade,
Tornar-se loquacidade, astuto
E voraz canibalismo onipotente:
O arrebate do arrebol da crueldade iminente e a corrosão selvagem,
Chama alimentando a sequidão leviana, alarve
Qual ansiosamente se encontra
Ás portas do sol que liberta
A aura da universal supernova hecatômbica, fúnebre, funesta!  

Enfim,
O teto, acima de mim,
Jaz sólido:
Contudo o liquefaço
Com o lume dos pensamentos
Que emana da íris dos meus olhos opacos.
 
Sim,
Contemplo, como se estivesse
Confinado numa câmara
Hermeticamente fechada,
A insensibilidade degustar-nos
Incomensuravelmente deleitada.

POEMA AQUÉM DA POROSIDADE

Meu olhar queda retrátil
Quando sorvido pelo silêncio
Do pensar largo.

Meu fazer nem graceja:
Seu sorriso é cênico
E sorumbático: tem sabor de Mastruz com Carqueja!

Minha jocosa verve
Chora quando readquire
A tez, o sumo
Do deserto e do cabaço.

Então o poema
Nem sangra, nem mija, nem filma, nem escarra, nem voa,
Nem clama, nem ama, nem brame: viva a serenidade!
Nem irrompe lágrimas  e nem é porosidade.

O MIRANTE DO DESABROCHAR PRECOCE 

Ao descerrar a janela do meu quarto,
Contemplo a paisagem do quintal de casa:
Compleição bucólica em que predomina
Uma atmosfera que cintila ao sol da manhã de crisálida.

Aqui, parece que a alvorada
Se despede mais cedo:
Entrega-se ao arrebate do fogo heliocêntrico
Quando o dia jaz ainda sob o aconchego do leito.

Passados alguns momentos de deslumbramento,
Acomodo um pouco meu olhar
Sobre a ventura da ótica
Que repousa na cama da urbana roça:

Meu par de olhos goza o contemplar
Das bananeiras, abacates, graviolas;
Mangas, mamões, limas, limões, laranjas, cenouras, abóboras;
Mandiocas, cocos, inhames, batatas-doces, acerolas!  

No entanto, é o céu que me enleva e arrebata:
O albino azul que me afoga;
As nuvens pairando plácidas;
No ventre, posso vislumbrar a linha do horizonte e ás abóbadas agigantadas.  

Afinal, ao regressar da dimensão do divagar,
Sinto-me como tivesse levitado
A bordo da nave do profundo pensar:
Agora, a poesia, em mim, eclode, recrudesce, é contínuo jorro de avatar!  

A CINÉTICA DO INTANGÍVEL

Observo passos ao longe:
Na verdade, eu tão-só os escuto. Tenho
A forte impressão de parecerem bastante nitentes
Para o raio de ação da minha audição. No
Entanto, o  manto da intangibilidade
Guarnece-os e os absconde
Sobre o ignoto píncaro do monte
Onde irrompe o inexpugnável horizonte.

Como que avidamente,
Fico querendo desvelar
Este hermético mistério, mas não consigo.
Em minha mente,
Vislumbro ordas de ladrões soturnos e escorregadios,
Sádicos seriais assassinos furtivos,
Rancorosos fantasmas:
Habitantes das minhas tenras
Eras lôbregas que me jazem,
Há muito, no memorial limbo.

De repente,
Como num passe de mágica,
Meu pensamento viaja:
Passeia sorumbaticamente
Pelas alamedas da tortura de Guantânamo e de Bagdá,
Do genocídio na plaga do Araguaia,
Pelas salas e celas escuras do DOPS.
Ainda, neste mesmo pungente passeio,
Contemplo um homem
Rosnar ferozmente contra a fronte da
Intencional morte. O nome dele...Vladimir Herzog!   

Deparo-me com as feridas psicológicas de frei Tito:
Continuamente florescem e  inexoravelmente
O lancinam, dando a luz a um facínora
Que lhe fala cruelmente ao ouvido.  

Testemunho impotente e furioso
O condor da maldade,
Trajado sombriamente
Com seu riso malevolamente sutil,
Voar impune,  gracejoso, cáustico, soberano:
Hipocritamente intrépido, varonil!

Contudo, é só a verve que se revolta:
Ela constata que a velhacaria
É o maior estandarte da espécie humana;
É a energia que movimenta a roda-viva
Da nossa odiosa invisível força.   

Mas a chama do sol teima em fulgurar:
Talvez espere que um dia o povo
Saia do estado de animação suspensa
E reivindique o comando do mundo.

Ah, e a elite destronada,
Ao cair no abismo da desgraça,
Depreenda que uma vida de migalhas
Atenua a fome, porém também,
Erige o caminho para a emancipação
Do dragão confinado no âmago das massas.

JESSÉ BARBOSA DE OLIVEIRA