Jesus: a morte de um preso político e não um “sacrifício religioso” ou “expiatório”

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Victor Brecheret,Via Sacra, A Morte de Jesus na Pinacoteca de São Paulo (foto de minha autoria)

Sexta-feira da Paixão é como é conhecido o “miolo” do Tríduo Pascal cristão, situada entre a última refeição de Jesus com seus discípulos, quando ele reafirma seu ensinamento decisivo, o caminho do amor, e a virada do sábado para o domingo, momento de esperança de uma vida renovada. A sexta é dia de contemplar  a prisão, tortura, julgamento, pena (crucifixão) e morte de Jesus, destino comum ao de milhares, milhões de presos políticos antes e depois dele.
A cena é descrita em detalhes no Evangelho de João (Jo 18,1-19,42) e antecipada, na Primeira Leitura, pelo último Canto do Servo Sofredor ( o 4º), no qual o profeta Isaías antecipava, mais de 500 anos antes, que um Servo seria preso e torturado: “tão desfigurado ele estava que não parecia ser um homem ou ter aspecto humano -do mesmo modo ele espalhará sua fama entre os povos”. O profeta anunciava que ele seria desprezado,  esmagado e que, em sua entrega amorosa, radical e desafiadora do sistema, iria mostrar a nós, “ovelhas desgarradas” e acovardadas, o caminho da resistência e da justiça (Is 52,13 – 53,12).
Há uma maneira de encarar a caminhada decisiva de Jesus, resultado de suas escolhas ao longo da vida, com um pietismo adocicado-azedado e carregado de um falso moralismo, como se sua morte fosse culpa individual de cada pessoa simplesmente por termos nascido. Seria um “sacrifício religioso” expiatório para nos absolver, num ciclo que se torna punição eterna, sem absolvição, pois aprisiona os homens e mulheres a uma culpa sempre renovada, nunca purgada, sempre a necessitar o perdão do padre, do bispo da Igreja.
É um engodo. Não houve sacrifício religioso algum. Jesus foi morto como um preso político, porque desafiou o poder político-religioso em Israel e o exército de ocupação romano, e propôs a seu povo uma vida de fraternidade, liberdade, superação e em amor responsável e acolhedor; uma vida de partilha e não de acumulação, de solidariedade e não de exploração; de amizade e não de competição.
Morreu como um subversivo. O artigo do teólogo espanhol José Maria Castillo é breve e contundente, como a vida do Mestre.  Ele foi jesuíta por muito tempo, deixou a Companhia de Jesus e tornou-se um teólogo de referência global –não é à toa que foi perseguido anos a fio pela Congregação para a Doutrina da Fé, com vários monitums [advertências] contra ele. Leia o artigo a seguir ou na versão original, publicada em Religion Digital há poucos dias:
“Uma das coisas que ficam mais claras, nos relatos da paixão do Senhor, que a Igreja nos recorda nestes dias da Semana Santa é o medo que o Evangelho desperta. Sim, a vida de Jesus nos dá medo. Porque, ao fim, o que não deixa margem a dúvida é que sua forma de viver –se é que os evangelhos são a verdadeira recordação do que aconteceu- levou Jesus a terminar seus dias tendo que aceitar o destino mais repugnante que uma sociedade pode determinar: o destino de um delinquente executado (G. Theissen).
A morte de Jesus não foi um sacrifício religioso. Ao contrário, pode-se assegurar que a morte de Jesus, tal como relatada nos evangelhos, nada teve a ver com o que, naquela cultura, se podia entender como um sacrifício sagrado ou de fundo religioso. Todo sacrifício religioso naquele tempo devia cumprir duas condições: teria que acontecer no templo (lugar do sagrado) e deveria seguir as prescrições de um ritual religioso. Nenhuma delas se deu na morte de Jesus.
Mais ainda: Jesus foi crucificado não entre dois ladrões, mas entre dois lestai, uma palavra grega que se utilizava para designar não apenas bandidos (Mc 11,17), mas igualmente a rebeldes políticos (Mc 15,27), como indicou o historiador Flavio Josefo (H.W.Kuhn; X.Alegre). Por isso compreende-se que, em sua hora final e decisiva, Jesus se viu abandonado e traído por todos: o povo, os discípulos, os apóstolos… A paixão e morte de Jesus tiveram de elemento religioso seus sentimentos, do próprio Jesus: e sabemos que seu sentimento mais forte foi a consciência de se ver abandonado inclusive por Deus (Mt 27,46Mc 15,34). A vida de Jesus acabou assim: sozinho, desamparado, abandonado.
O que isto tudo nos diz? A Semana Santa diz-nos, nos textos bíblicos que lemos estes dias, que Jesus veio para por em questão a realidade em que vivemos. A realidade violenta, cruel, na qual se impõe a lei do mais forte frente à lei de todos os fracos.
Sabemos que Paulo de Tarso interpretou o relato mítico do pecado de Adão como origem e explicação da morte de Jesus, para nos redimir de nossos pecados (Rm 5,12-14). Os pregadores lançam mão desta interpretação para concentrar nossa atenção na salvação do céu. Isso é bom, mas carrega o perigo de desviar nossa atenção da trágica realidade que estamos vivendo. A realidade  da violência que sofrem os zé-ninguém, a corrupção dos que mandam e, sobretudo, o silêncio daqueles que sabem disso tudo mas ficam quietos para não perder seu poder, suas dignidades e seus privilégios.
A beleza, o fervor, a devoção de nossas liturgias sacras recorda-nos a paixão do Senhor. Porém, elas questionam a duríssima realidade que vivem milhões e milhões de seres humanos? Recordam-nos a vida de Jesus e seu fracasso final? Ou nos distraem com devoções, apegos estéticos e tradições que utilizam a memoria passionis, de Jesus apenas para cuidar de sua boa consciência? “
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