Quem tem medo de Tiririca?

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Francisco Everardo Oliveira Silva, o Tiririca, foi eleito deputado federal com a segunda maior votação da história. Foram 1,35 milhões de votos no estado de São Paulo, inferior somente à marca de Enéas Carneiro em 2002, quando recebeu 1,6 milhões. Nesta, o palhaço teve mais que o dobro do segundo lugar. A título de comparação, obteve mais sufrágios do que políticos profissionais e experimentados, como Garotinho (700 mil no Rio de Janeiro), Gabriel Chalita (560 mil em São Paulo), Manuela D´Ávila (480 mil no Rio Grande do Sul) ou Luiza Erundina (210 mil também em SP). Atribuído (injustamente) ao voto de protesto, o sucesso dessa figura ímpar junto ao eleitorado foi comparado às votações do antológico Rinoceronte Cacareco (em 1959!, 100 mil votos), do Macaco Tião (chiste do Casseta & Planeta, em 1988, 400 mil sufrágios) e do apresentador Clodovil Hernandes (efetivamente empossado em 2006, com 500 mil eleitores).


Este ano, Francisco Silva fez uma campanha descontraída e debochada, com os slogans “Pior do que está não fica” e “Você sabe o que um deputado federal faz? também não sei, mas vote em mim que eu te conto depois“. Personagem de trânsito popular, Tiririca suplantou em avacalhação todos os outros candidatos humoristas e celebridades, e se tornou um fenômeno eleitoral.

Como se define, um “cearense abestado”, natural de Itapipoca (100 mil habitantes), o comediante de 45 anos já atuou no circo, cantou, dançou, fez mágicas, compôs (quem não lembra o hit “Florentina”?) e participou de programas burlescos de TV, como Escolinha do Barulho, A Praça é Nossa e O Show de Tom.

Com toda essa trajetória, não deveria ser mistério e muito menos escândalo a escolha de uma personalidade tão enraizada na cultura popular. Desde Oswald, Sganzerla, Chacrinha e o tropicalismo em geral, sabe-se que, neste terceiro mundo, o popular não reside somente nos arquétipos clássicos da esquerda, do diligente operário ou do robusto camponês, mas sobretudo no cafona, no lúmpen, no amálgama colorido de pagodes, forrós, calipsos e cordéis. Ora, melhor exemplo disso que Tiririca não há: o clown brega, o pierrô sertanejo, o Aristófanes contemporâneo, o bobo da corte tropicalista que “é a cara da sociedade” (Presidente Lula).

Não à toa virou rapidamente saco de pancadas da mesma imprensa que repercutiu a sua campanha e assim garantiu-lhe a votação recorde. Para ela, constitui uma “vergonha nacional”, signo decadente da falência da política. Nesse sentido, a Revista Época vem encabeçando a frente “indignada”. Seu objetivo final: deslegitimar os 1,35 milhões de votos de Francisco Silva, sob a alegação de que é analfabeto. Tacharam-no de alimentar-se da “ignorância popular” (sic), de ser “produto de laboratório e marketing”, e de “puxador de voto”. A reclamação intensificou-se pois a expressiva marca de Tiririca conduziu de roldão à Câmara três outros candidatos da coligação governista. Entre eles, entrou o delegado Protógenes Queiroz, nos holofotes desde que comandou, em 2007, a Operação Satiagraha (que prendeu vários banqueiros, como Daniel Dantas) e foi convenientemente afastado logo em seguida.

Irradiando os calores da grande imprensa, o Ministério Público (MP) agiu “em defesa da sociedade”, e acusou-o de falsificar a inscrição eleitoral, bem como de não saber ler e escrever. O Tribunal Regional Eleitoral recebeu a petição e marcou para o dia 11 de novembro o exame de português. Embora o deputado eleito possa se recusar ao teste, vexaminoso em essência, até agora indicou que deve comparecer. Faz questão de provar que reúne os rudimentos vernaculares. Para o MP, se não os comprovar, a sua candidatura feriria um dos critérios constitucionais de elegibilidade e não deveria ter sido homologada pelo Tribunal. Mas foi. E, ainda por cima, angariou maciço respaldo, com mais de um milhão de sufrágios.

À parte da questão classista e preconceituosa sobre o grau de instrução, vem a pergunta: e o milhão e tanto de votantes de Tiririca, frustrados em sua escolha soberana? Se, em ofensa à democracia, a sua eleição vier a ser invalidada, os votos não serão declarados nulos. De acordo com o código eleitoral (art. 175, § 4º), quando a impugnação se dá depois do pleito, os votos vão para o partido, “puxando” mais deputados. Mas quem? Curiosa ironia: José Genoíno, do PT, é o próximo da fila. Ou seja, para a oposição/imprensa, pior que está não fica.

O fato é que, por trás da barulheira ao redor de Tiririca, sobram preconceitos. Contra pessoas de menor escolaridade, contra pobre, contra nordestino, em suma, contra a cara da sociedade. O que incomoda a outra “sociedade”, isto é, a classe-média branca diplomada do Sul-Sudeste. Seus representantes, também chamados de “opinião pública”, não engolem um cearense abestado e ainda por cima de “mau-gosto” no Congresso Nacional. Como se alcançar um diploma de doutor, assistir ao Jornal Nacional e ler a Folha de São Paulo fizessem, dessa “sociedade”, cidadãos melhores para representar o Brasil. Não fazem, e para isso basta ver a profusão de “idiotas úteis” no Congresso, a serviço de centrões fisiológicos e oligopólios (das telecomunicações, do agronegócio, da construção civil).

Tiririca se tornou o Guy Fawkes do parlamento brasileiro. Uma “wild card”, coringa avacalhador que expõe a nudez do rei, a sua face cinzenta de racismo, má-consciência e ódio de classe. A eleição de Tiririca recapitula não somente o bufão romântico, que entra em cena no clímax dramático para parodiar o poder, numa versão marginal-sganzerliana. Honra também o palhaço sentimental, tal como Arrelia, Estilingue, Torresmo, Carequinha — esses heróis tragicômicos que contagiam na alegria e na tristeza do cidadão real, na sua ternura, na sua raiva, no seu desejo de melhorar a vida e o mundo em que vive.

*Postado originalmente em quadradodosloucos - http://quadradodosloucos.blogspot.com/2010/11/coulrofobia-quem-tem-medo-de-tiririca.html

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FOTO
Legenda:
Máscaras de Carnaval, pelo artista plástico Sergi Arbusà.


(Envolverde/Outras Palavras)