Escatologicamente correto

Edgar Vianna de Andrade
(Borat)

 

Curiosamente, o termo "escatologia" tem dois sentidos incompatíveis. O primeiro designa um ramo da teologia que trata do final dos tempos: a volta do Messias, a Ressurreição dos Mortos, o Juízo Final, o Céu e o Inferno. O segundo refere-se ao estudo dos excrementos. Como pode uma mesma palavra tratar de dois assuntos tão distantes entre si e, ao mesmo tempo, quase diametralmente opostos? Ou será que não?

Borat ( Borat: Cultural Learnings of America for Make Benefit Glorious Nation of Kazakhstan , EUA, 2006), uma das comédias mais irreverentes, despudoradas e iconoclastas do cinema, é escatológica na segunda acepção. Embora seja dirigida por Larry Charles, a alma do filme é Sacha Baron Cohen, um comediante inglês. Ele, Peter Baynham, Todd Phillips, Anthony Hines e Jay Roach escreveram a história que servirá de base ao roteiro, também de autoria de Baron, Peter Baynham e Dan Mazer. Quem produz a comédia? Ainda Sacha Baron e Jay Roach. A música ficou a cargo de Erran Baron Cohen, para tudo ficar em família. Para completar, quem é o artista principal? Ora, o impagável Sacha Baron Cohen, no papel de Borat Sagdiyev, um repórter completamente destrambelhado, na linha de Casseta e Planeta ou de Pânico na TV .

A história se desenvolve na forma de pegadinhas, com Cohen assumindo convictamente o papel de Borat numa aldeia do Cazaquistão. Ali, ele apresenta sua irmã, a quarta melhor prostituta do país, sua idosa mãe de 43 anos e seus amigos. Ali, ele mostra a festa pública com pessoas fantasiadas de judeus demoníacos, sendo que a judia bota ovo. É um completo escracho que levou o governo do Cazaquistão a contratar duas empresas de relações públicas para revidar as alusões de Borat ao país, publicando um anúncio de quatro páginas no The New York Times . Sacha Baron Cohen, que encarnou o personagem de Borat na frente e fora das câmaras, em resposta às acusações, organizou uma falsa conferência de imprensa na Casa Branca em 29 de novembro de 2006, um dia antes da visita do presidente do Cazaquistão aos Estados Unidos. Levando a sério o humor "trash" de Borat, o governo do Cazaquistão convidou o humorista (qual deles?) a visitar o país para desfazer a imagem negativa retratada na comédia.

Mas as confusões do segundo melhor repórter não se encerraram com este incidente internacional. Embora judeu, Cohen ridiculariza os judeus, trazendo do fundo do baú preconceitos antigos sobre eles, tais como povo demoníaco, assassino, astuto e dissimulado. Numa cena em que ele e Azamat Bagatov (Ken Davitian), seu desastrado acompanhante de viagem aos Estados Unidos, conseguem uma hospedagem das mais hospitaleiras na casa de um casal judaísta, ambos temem ser assassinados e julgam que marido e mulher haviam se transformado em duas baratas para atacá-los. Borat debocha do movimento feminista, do movimento negro, do movimento gay, do movimento ecologista. Ele é machista, homofóbico, racista, anti-semita. Borat é completamente incorreto do ponto de vista político.

Mas o que Cohen e Larry Charles parecem realmente pretender é pegar os norte-americanos desprevenidos, passando-se o primeiro realmente por um repórter do Cazaquistão para colher suas opiniões pessoais, indeclaráveis publicamente. A idéia que o povo dos Estados Unidos têm de países pobres e desconhecidos não está longe da imagem que Borat transmite do glorioso Cazaquistão. O racismo, o anti-semitismo, o machismo, o conservadorismo, o fanatismo religioso, a homofobia e o anti-ecologismo não são prerrogativas de governantes, senão que entranham toda a sociedade norte-americana da cabeça aos pés.

Ao atirar na cara a hipocrisia dos próprios norte-americanos, Cohen/Borat foi abordado 91 vezes pela polícia. Em todas elas, ele se apresentou como repórter do Cazaquistão fazendo um documentário sobre os Estados Unidos. Em Nova York, ele recebeu um mandado de prisão. Em Washington, o serviço secreto interrogou integrantes da equipe que estavam tomando cenas externas da Casa Branca. Borat ridicularizou as autoridades. Até a coelhinha da Playboy e artista Pamela Anderson caiu numa das brincadeiras do humorista, o que lhe custou ser imobilizado por dois seguranças.

No entanto, como os norte-americanos gostam de apanhar, Borat bateu o recorde de maior estréia de um filme lançado em menos de mil salas, que pertencia a Fahrenheit 11 de Setembro (2004). O filme estreou em 837 salas nos Estados Unidos, arrecadando US$ 26,4 milhões em seu primeiro fim de semana. Com um orçamento de apenas US$ 18 milhões, a comédia recebeu uma indicação ao Oscar de Melhor Roteiro Adaptado, ganhou o Globo de Ouro de Melhor Ator-Comédia/Musical e foi indicado como Melhor Filme-Comédia/Musical.

Em meio a comédias românticas melífluas e comédias ridículas, como Norbit , Borat nos devolve o riso solto e franco que nos arrancavam as comédias demolidoras dos Irmãos Marx e de Monty Python.