Música total (esboço de conto)

Antes de pronunciar sua primeira palavra, Antero já demonstrava gostar de música. Ainda bebê, no colo de sua mãe, ele balançava o corpo ao som de algumas músicas, como se dançasse. Criança, ele cantarolava sambas de Ataulfo Alves para o pai, enquanto este se barbeava.
Sua mãe adorava música erudita. Estudara piano e balé, mas deixou tudo ao se casar. Era uma artista frustrada que se consolava em ouvir programas de rádio com músicas de sua preferência. O pai gostava, no máximo, de árias de óperas cantadas por Mario Lanza.
Aos nove anos, Antero começou a gostar de música erudita. Ficou fascinado com “Quadros de uma exposição”, de Mussorgsky, e com “Daphnis e Chloe”, de Ravel. Seu gosto foi se ampliando. O menino passava horas inteiras com os ouvidos colados naquele aparelho de rádio que emitia melodias fascinantes. Como as músicas não eram oferecidas com freqüência, ele era todo atenção, esperando que as composições do seu agrado fossem repetidas pela programação das emissoras. Assim, memorizou muitas delas. Na sua casa não havia outra aparelhagem de som que não fosse o rádio.
Aos doze anos, Antero havia já desenvolvido um gosto musical apurado. Conhecia Bach, Beethoven, Brahms, Villa-Lobos e muitos outros compositores. Não gostava de Haydn e de Mozart, por entender que suas composições se pareciam muito entre si e entre os dois e que não eram melodiosas. Certa vez, leu que Brahms só podia ser admirado depois dos 40 anos, já que era muito complexo. Este era seu trunfo.
Antero decidiu ser compositor e regente de orquestra. Cultivou este sonho durante sua adolescência, mas ele não agradava a seu pai, que desejava outra carreira para o filho. O rapaz acabou abdicando de seus planos, mas nunca deixou de ouvir música e de reger orquestras fictícias no escuro do seu quarto. Chegou mesmo a compor muitas peças em sua mente. Sinfonias, concertos, música de câmera que eram logo esquecidos.
Para compensar sua frustração, Antero frequentava orquestras e musicistas. Tornou-se amigo de um trompista que lhe conseguia ingressos gratuitos. A bem da verdade, sua família considerava suas atitudes meio estranhas. Ele mesmo se olhava com os olhos dos parentes e se perguntava sobres seus gostos. Mas a dúvida e os questionamentos se esvaíam quando a música emanava de algum lugar.
Casado e com filhos, Antero não pode mais ouvir com freqüência as músicas que apreciava. Com seu salário, comprou um aparelho para discos de 78 e de 33 rotações. Seu prazer, enquanto músico frustrado, era comprar discos, que procurava com afinco nas lojas. Cada descoberta, para ele, equivalia ao prazer do arqueólogo que topa com um grande achado. Cada disco era ouvido diversas vezes até que as composições se entranhassem em sua mente. Embora ouvisse músicas de compositores os mais diversos – agora, inclusive Haydn e Mozart –, ele as aprendia todas, como se lesse partituras fluentemente.
Antero não tinha dúvidas a seu respeito: era um compositor e um maestro frustrados pela vida, pela família e por sua covardia. Sua única compensação era ouvir. Até pensou em estudar música depois de aposentado, mas chegou à conclusão de que seu tempo passara. Ele não teria paciência para estudar um instrumento começando do zero, como se fosse jovem. Nem, tampouco, se conformaria em executar composiçõezinhas.
Restava-lhe apenas ouvir. Seu salário era razoável e lhe permitia adquirir obras completas de compositores. Ele chegou ao requinte de comprar várias interpretações de uma mesma peça e a distinguir detalhes entre elas. Mas algo estranho começou a ocorrer com o ouvido musical de Antero: ele não conseguia mais memorizar, com a facilidade da era do rádio, as músicas que ouvia. Sua mente começou a ser assolada por sons que não conseguia reconhecer e controlar. Era capaz de acompanhar composições inteiras em detalhes, mas só conseguia reconhecer a escola e o compositor, não a peça.
Pouco a pouco, os sons musicais foram substituindo as palavras. Antero quase nada falava e cantarolava o tempo todo. A música foi invadindo sua alma e tomando conta de todo o seu ser. Antero não tinha mais uma noite de sono tranquilo. Se conseguia dormir um pouco, sonhava que regia uma grande orquestra ou que executava uma composição num instrumento qualquer. Chegava mesmo a compor peças belíssimas em seus sonhos, mas as esquecia ao acordar.
Antero morreu louco. Começou a esquecer palavras. Depois, esqueceu a própria língua. Se alguém conversava com ele, a resposta vinha invariavelmente por meio de sons. Nos seus últimos dias, ele não mais dormia, pois os sons musicais o atormentavam. Depois de sua morte, a família descobriu várias composições de Antero assobiadas para um gravador.

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