Nós, mestiços

Da pequena família dos hominídeos, todas as espécies se extinguiram. Só o Homo sapiens restou. Nossos antepassados não nos deixaram nenhum relato escrito porque nenhum inventou um sistema de escrita. Assim, os cientistas usam ossos, ferramentas, esculturas e pinturas para reconstituir a história dos hominídeos, que reúnem cerca de vinte espécies. Os estudos estão sempre em efervescência e revelam novidades.

As três mais recentes são:

1- Como explicar o bipedalismo? Parece óbvia a resposta para esta pergunta. Andamos sobre duas pernas porque andamos. No entanto, não se encontrou ainda uma explicação satisfatória. A hipótese mais aceita é a de que um grupo de primatas foi obrigado a descer das árvores para buscar alimento na savana. Uma grande seca teria encolhido as florestas e ampliado as savanas. A população de tais primatas se tornou grande em relação à oferta de alimentos. Aumentaram as tensões entre eles. Muitos morreram. Outros foram para as savanas atrás de comida. No novo ambiente, era preciso adotar a posição ereta para espreitar a presa e para vigiar o predador.

Outra hipótese defende que alguns primatas conseguem se locomover no solo, embora vivam nas árvores. Assim, os que desceram já conseguiam caminhar sobre duas pernas. Daí em diante, foi só uma questão de adaptação. Aventou-se também que a marcha bípede se impôs por economia energética. Gorilas e chimpanzés não conseguem fazer longas caminhadas usando as pernas e tendo o corpo peludo. Pensou-se ainda que a locomoção eficiente na savana exige a liberação das mãos para carregar objetos, alimentos e filhotes. Até a necessidade de colher frutos em árvores foi invocada para explicar a postura ereta. Mais recentemente, Graeme Ruxton e David Wilkinson, dois cientistas britânicos, rejeitaram as explicações correntes, mas também não propuseram outra. Eles apenas observam que a postura bípede exige um corpo com poucos pelos. Para eles, é importante observar que os piolhos que parasitam os pelos pubianos (Pthirus pubis) apareceram há três milhões de anos. Assim, a postura ereta deve datar desse tempo.

2- Hominídeo estranho. Um cientista etíope e outro norte-americano toparam, recentemente, com oito ossos do pé direito de um hominídeo, revelando que o dedão não se alinha com os outros dedos, permitindo caminhadas de longo alcance. Este achado não seria de se estranhar, pois o Ardipithecus ramidus também apresenta este traço anatômico e é considerado hominídeo. Só que o A. ramidus data de 4,4 milhões de anos, enquanto que o novo hominídeo viveu há 3,5 milhões de anos. É contemporâneo, portanto, do Australopithecus afarensis, cujos pés já estavam irreversivelmente adaptados à marcha. Aguardemos mais explicações. Afinal, há cientistas que suspeitam ser o A. ramidus mais ligado ao gorila do que aos hominídeos. Por ora, o novo achado pode apontar para um hominídeo sobrevivente de tempos passados ou para uma espécie não-hominídea.

3- Hominídeos pré-sapiens fora da África. Tinha-se por certo que todos os hominídeos nasceram na África. O primeiro a colonizar outros continentes foi o Homo erectus, há cerca de um milhão de anos. Depois, foi a vez do Homo neanderthalensis. Por fim, o Homo sapiens teria exterminado todas as outras espécies anteriores, na África e fora dela. Atualmente, parece que o processo não foi bem assim. A ponta do dedo mínimo de uma menina e do molar de um jovem adulto que viveram há 40 mil anos na Sibéria passaram pelo sequenciamento genético e revelaram uma nova espécie de Homo, que está sendo chamada de denisovano. Ele teria cruzado com o sapiens, assim como aconteceu entre sapiens e neandertal. Restos de um terceiro grupo de Homo foram encontrados na ilha de Flores, Indonésia, batizado de Homo floresiensis. Esta espécie desapareceu há 17 mil anos e não se sabe ainda se cruzou com o sapiens. Mas a história não termina aqui.

Nova espécie foi encontrada no sul da China e ainda não batizada. Ela teria desaparecido há apenas 11 mil anos. Os estudiosos acreditavam que, nessa época, o sapiens já dominava absoluto todos os continentes. Como ainda não houve o sequenciamento genético da possível nova espécie, não se sabe se o sapiens miscigenou-se com ele.

Algumas conclusões, sempre provisórias, impõem-se, no momento:

1- O que distingue radicalmente os hominídeos dos seus primos orangotango, gorila, chimpanzé e bonobo é a postura ereta e o pé adaptado à marcha, mesmo que algumas espécies não tenham passado completamente por esta mudança.

2- Não se tem ainda uma explicação sólida para a adoção da postura ereta.

3- Não se tem mais certeza de que todas as espécies hominídeas nasceram na África. O Homo erectus e o Homo neanderthalensis podem ter dado origem a outras espécies fora da África.

4- É certo que o Homo sapiens, ao sair da África, cruzou com o neandertal e com o denisovano, talvez até com o grupo encontrado no sul da China.

5- Assim, portanto, somos uma espécie mestiça. Tais conhecimentos deveriam ser transmitidos em todos os níveis de ensino, inclusive no universitário. Trata-se de uma poderosa arma para combater o racismo.