O caráter do ecologismo

Volto a um tema que me persegue e que já discuti em alguns artigos: qual o caráter de classe do movimento ecologista? Quando comecei minhas leituras, minhas reflexões, meus escritos e meu ativismo em defesa do ambiente, nos anos de 1970, não se falava em ambientalismo, mas em ecologismo. Identifiquei-me com o grande projeto de transformação proposto pelo ecologismo. Não confundir com ecologia, ciência que estuda os ecossistemas. O ecologismo é proposta filosófica e política.
Atualmente, a palavra caiu em desuso e acabou substituída por ambientalismo, perdendo a força embutida no conceito de ecologismo. Para nós, tratava-se mais de um movimento intelectual e político do que movimento social. Isto porque não havia relação clara entre uma classe social e o movimento. Ele não estava ligado à grande e à pequena burguesia nem ao proletariado, classes sociais muito vinculadas ao capitalismo. Por outro lado, não se afinava também com o socialismo. Por passar ao largo do humanismo antropocêntrico é que pude perceber a natureza não humana sem deixar de me preocupar com a natureza humana.
No entanto, pensadores de esquerda, como João Bernardo, Gildo Magalhães e Maurício Tragtenberg, identificaram o ecologismo como um movimento de classe média. Bernardo considerava o ecologismo como o último obstáculo à revolução operária. Magalhães defendeu a destruição da natureza pelo capitalismo como meio de se alcançar o socialismo/comunismo. Na visão deles, o ecologismo se mostrava retrógrado, pois retardava a revolução proletária. Tragtenberg considerava os ecologistas como representantes desempregados da classe média em luta contra a cobrança de impostos pelo Estado. Em suma, nenhum dos três levou em conta as preocupações ambientais de Marx e Engels, embora elas ocupassem um pódio mais baixo em relação à questão soc ial. Nenhum dos três conseguiu reconhecer que a natureza não humana antecede a humana, que os seres humanos têm uma raiz natural e que outras espécies, além da nossa, têm valor intrínseco.
Enfrentando muitas resistências dos marxistas e dos anarquistas, acabei acompanhando os ex-socialistas Claude Lévi-Strauss e Edgar Morin, que avançavam na compreensão da relação sociedade-natureza. Aliás, eles propõem superar a dicotomia cartesiana sociedade X natureza, alcançando a junção epistemológica sociedade+natureza. Estavam lançadas as bases de um novo paradigma geral que se contrapunha ao paradigma geral da modernidade. Em vez de monodisciplinaridade, multidisciplinaridade e interdisciplinaridade, propunha-se a transdiciplinaridade.
Sendo muito amplo e complexo, o paradigma organicista ou sistêmico não conta com muitos pensadores. Não pode associar-se a nenhuma classe social. O ecologismo é expressão do paradigma sistêmico. Ele não se restringe às sociedades humanas nem à natureza não-humana. Sei que é difícil, para um cientista social, admitir algo de importante além dos limites das sociedades. Sei que é difícil para eles considerar a importância de uma espécie ameaçada de extinção. Por outro lado, sei que é difícil para um cientista da natureza compreender a complexidade social, mas fácil reconhecer o valor de espécies ameaçadas.
O ecologismo/ambientalismo se mostra tão difuso nos dias de hoje que os cientistas sociais Eduardo Viola, Hector Leis e Sérgio Boeira tentaram amarrá-lo numa tipologia, identificando versões do ambientalismo de acordo com grupos (não classes) sociais. Assim, poder-se falar em ambientalismo multissetorial. No entanto, continuo divisando tendências do movimento que não se relacionam a grupos sociais. Saliento também a amplitude e a penetração de um movimento como o Greenpeace, com todos os senões que esquerda e direita possam lhe atribuir.
Assim, como Bernardo, Magalhães e Tragtenberg, compreendo o ecologismo/ambientalismo como um movimento intelectual nascido e mantido pela classe média, só que num sentido positivo. A questão ambiental não é uma ficção. O aquecimento global, o empobrecimento da biodiversidade, a acidificação dos oceanos são reais. Não podemos esperar que os movimentos sociais, no seu sentido estrito, passem a atacá-los. Os movimentos sociais relacionados a conflitos podem se apropriar da proposta ambientalista, mas não de forma profunda.
Enfim, de nada valem as reclamações de um ecologista histórico como eu quanto às inconstâncias dos movimentos sociais com relação a uma proposta mais ampla de economia, sociedade, política e cultura. Devo associar-me a tais movimentos nos momentos em que eles encampam o discurso ecologista e conformar-me com a solidão.

ARTHUR SOFFIATI é historiador e ambientalista

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