Morar Feliz?

Há programas que nascem de boas idéias, mas se perdem por falta de adequado planejamento e de correta execução. Desde o princípio, percebi esta discrepância no Programa Morar Feliz de habitação popular de Campos dos Goytacazes. A atual gestão municipal propala que ele é o maior programa habitacional municipal do Brasil, pois tem o fito de construir dez mil casas populares em quatro anos com recursos próprios, sem recorrer ao programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal.
A idéia é boa. Que governante sério não quer resolver - ou pelo menos minorar - o problema de moradia para a população de baixa renda? E a ideia se fortalece mais ainda por ser sustentada com recursos oriundos dos royalties do petróleo. Os municípios beneficiados por essa distinção do acaso devem fazer jus para mantê-la, revelando capacidade de fazer dela um bom uso.
Contudo, em termos de planejamento e execução, o programa vem revelando suas mazelas. A primeira delas é ignorar solenemente o Plano Diretor do município. Nesta Lei, as áreas destinadas a conjuntos habitacionais populares estão claramente assinaladas, mas nenhuma delas está sendo usada. Tem-se a impressão de que o poder público municipal desconhece um plano, que já deseja mudar, sem nunca tê-lo minimamente aplicado. Assim, o Morar Feliz sabota uma das duas leis mais importantes do município (a outra é a Lei Orgânica, também esquecida).
O primeiro questionamento que faço ao Morar Feliz, encaminhado ao Ministério Público Estadual no início de 2010, é a escolha de áreas contíguas a lagoas para erguer conjuntos habitacionais. As principais lagoas afetadas pelo programa foram as de Maria do Pilar (Brejo Prazeres), do Taquaruçu (Lagoa dos Prazeres), da Olaria, do Fogo e das Pedras. Pela legislação ainda vigente, as lagoas envolvidas pela malha urbana devem ter uma faixa de 30 metros nas margens a contar do seu leito mais alto. É o que se denomina Área de Preservação Permanente (APP). Ela não deve ser confundida com Faixa Marginal de Proteção (FMP), demarcação especial que deve ter, no mínimo, 30 metros. Das lagoas escolhidas para núcleos do Morar Feliz, todas têm, automaticamente, APP. Apenas as Lagoas do Taquaruçu e das Pedras contam com FMP. Em todas elas, os dois instrumentos de proteção das lagoas, tão importantes para assegurar a macrodrenagem de Guarus, foram feridos em vários pontos.
Não existe um texto correspondente ao programa. Apenas desenhos, plantas e cálculos matemáticos. O recurso empregado pela empresa licitada é o de fazer vastos e altos aterros nas margens de lagoas e de áreas baixas. Não fosse a preocupação de cidadãos e do Ministério Público Estadual (MPE), a Prefeitura teria avançado sobre o espelho d'água das lagoas com o aval do Instituto Estadual do Ambiente (INEA), que despreza brejos.
Aparece, então, o segundo problema do programa: os riscos de rachaduras nas ruas e nas casas derivados da acomodação dos aterros. Quanto a esta dimensão, recorro a pareceres do Grupo de Apoio Técnico Especializado do MPE, de engenheiros, arquitetos e urbanistas. Esses documentos registram problemas decorrentes da pressa em entregar as obras. Afinal, dez mil casas em quatro anos é um objetivo ambicioso demais. Em praticamente todas as unidades do programa, começam a aparecer rachaduras e processos erosivos. Os taludes não estão sendo contidos com muros de arrimo. No lugar de criar efetivamente os Parques Municipais do Taquaruçu e da Lagoa das Pedras, a prefeitura tenta remendar o tecido roto com o plantio de árvores nas APPs. O problema também já foi levado ao MPE, assim como o valor de cada imóvel, com fortes indícios de superfaturamento.
Do ponto de vista técnico, especialistas têm arguido o caráter uniforme e reducionista das unidades: casas padronizadas, ruas subdimensionadas, ausência de áreas públicas de lazer, falta de transporte urbano. Dimensão que também já foi questionada no MPE.
Então, entra em cena a questão social. A transferência de moradores em áreas de risco para as unidades do programa não está obedecendo ao que preceitua a Lei Orgânica. As transferências não podem ser efetuadas de forma autoritária, sem consulta, sem discussão com as comunidades, como aconteceu em Ururaí. Há famílias que empenham suas parcas economias na construção de seus lares durante anos. Elas criam relações sociais com os vizinhos e, de repente, o poder público as deporta para casas padronizadas, de valor muito aquém ao das casas que construíram, onde são jogadas em ambiente estranho. Defendo a transferência (não remoção), mas após muita discussão com os afetados.
O resultado desse processo autoritário já começa a dar sinais. Casas estandardizadas cujos moradores não se conhecem+falta de áreas públicas de convivência+êxodos urbanos forçados=violência.