AS DUAS CAIXINHAS

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     Devo a você tudo que sei. Desde as primeiras letras estavas comigo, ensinou-me palavras, construímos frases e textos, expusemos também nosso mais íntimo sentimento. Foi ainda através de você que abri os meus olhos para o mundo.  Mostraste-me nas belezas da vida, o esplendor de uma rosa se abrindo, o fruto vermelho no bico de um pássaro azul como o céu, mesclado por nuvens tão alvas, tal qual as densas espumas, subindo nas pedras cinzentas, nas orlas de praias fantásticas. Mostraste-me que os olhos de verde profundo, flechando em meu peito o mistério sublime daquilo que tantos procuram, mas poucos conseguem de fato. Sentir sem pecados o tal sentimento, por todos, chamado de amor.
      Comigo, no tempo, fiel ao meu lado, sorrindo ou sofrendo, jamais interviu nos meus sentimentos ou, sequer, sugeriu uma ação diferente àquela que eu havia tomado.
      Foi o leal companheiro de todos escritos, o maior professor, comparsa nas tramas de histórias criadas ao som dos badalos do sino da igreja, rompendo o luar de madrugadas infindas e só se deitava depois que eu, cansado, esticava meu corpo no conforto do leito.
      Ao sol da manhã quando os raios primeiros rompiam as vidraças, já estavas comigo, aliás, desde os primeiros passos e, fosse onde fosse, jamais questionavas, apenas me seguia, com total confiança, nas novas aventuras.
      Caramba! Quantas histórias de amor, de terror, engraçadas, tristes, fictícias ou reais! E nós? Essa dupla perfeita, ao sabor das idéias por vezes brilhantes, em outras nem tanto, vagávamos perdidos, flutuando nos zéfiros de tardes tão quentes ou no intenso frio de ventos uivantes dos duros invernos e em noites macabras.
      Assim, pelo tempo, durante algum tempo, vencemos o tempo. Mas, hoje, sem termos mais tempo, nos restam as caixinhas que agora nos guardam. Com a dupla desfeita, o que somos? Um livro sem letras ou um dia sem sol? Uma noite sem lua ou estrelas cadentes? Não sei! Preciso ir embora, não tenho mais corpo e a tal de ilusão já partiu a bom tempo.
      Quem sabe algum dia até possas, não eu, através de outras mãos curiosas, sair da caixinha perfeita? Mostrar para outros olhos verdes, castanhos, negros ou quem sabe azuis, àquelas belezas das orlas de praias fantásticas, nas pedras cinzentas, o branco da espuma, qual as nuvens mesclando um céu tão azul como o pássaro, tendo ao bico um fruto vermelho? 
       Só você poderá obter outra chance, não eu que, nessa caixa tão podre, adubando essa terra, no breu de uma noite infinita e sem nada enxergar. Pois, sem você, não teriam existido as belezas da vida e nem mesmo esse conto. Obrigado por tudo, meus óculos.