PORQUE OS TRILHOS, SE NÃO PASSAM OS TRENS...

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Descanso o pincel sobre a mesa e penso em uma frase que acabo de ouvir na música que está tocando, escrevo-a em um papel borrado de tinta e do esboço da tela que está a minha frente, continuo meu trabalho com aquelas palavras martelando minha cabeça “porque os trilhos, se não passam os trens...”

Ao mesmo tempo em que a tinta vai desenhando uma idéia, minha mente desenha a frase que acabo de ouvir e começo a viajar por uma estrada que todos nós já trilhamos... Vejo nitidamente cada dormente que coloquei sob os trilhos para dar passagem a uma maravilhosa locomotiva que trazia todos os planos e sonhos.

Por vezes edificamos imensas ferrovias em nossos ideais, nos vemos a frente dela, arrastando vagões repletos de maravilhas e nos esquecemos que nem sempre por estes trilhos passarão os trens.

Em alguma parte do caminho surgem os desvios que nos levam, da estrada edificada à estrada alternativa, e somos obrigados a seguir por esta última.

Em um dado momento, na trajetória desta ferrovia, procuro por uma estação, sei que não será aquela que idealizei, com arcos em ferro e flores margeando os trilhos, mas certamente me dará o repouso necessário para prosseguir.

Enquanto descanso do peso que arrasto, vejo as pessoas que vieram comigo nesta viagem, quantas desceram em outras estações, quantas já não estão entre os passageiros, quantas deixei ir sem ao menos dizer adeus, sem ao menos demonstrar o meu amor por elas.

Mais uma pincelada em minha tela e uma nova imagem surge diante de meus olhos, a imagem do que não fiz, as cores que não usei. Tivesse eu tingido aquele céu escuro de azul cerúleo, certamente teria sido mais agradável passar pelo desvio do desconhecido.

Com este pensamento, carrego de cores vivas meu novo trabalho na esperança de colorir aquelas lembranças passadas.

O pincel pesa agora uma tonelada, me parece um sacrilégio erguer a mão e fazer mais um traço, de repente está tudo tão perfeito, aquela tela inacabada que traz ao fundo todas as cores que não soube usar, sinto uma euforia tola, como se tivesse descoberto todos os segredos do universo então percebo que os trens foram por outros caminhos, mas chegaram da mesma forma à estação, mais vagarosamente com certeza, mas estão aqui, a minha frente, estampados em um colorido imaginário.

Ouço a sonora gargalhada que sem perceber escapa de minha boca, entreaberta e embasbacada com a beleza daquela estrada empoeirada.

Brinco com os tubos de tinta e hoje sei que nada é impossível, mesmo não tendo viajado na primeira classe como eu gostaria, ainda assim eu cheguei, e agora na minha estação com arcos de ferro e flores ao longo dos trilhos, ainda ouço as risadas alegres de crianças que brincam nos jardins e insistem em me chamar de vovó.