O sapateiro e o alfaiate da Nova Democracia

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Batendo o martelo nas coxas, já calejadas pelos anos, o velho Djecyr Nunes da Gama, sorri de lado.

— Sapateiro é porque bate sapato?— pergunto querendo puxar conversa só para ouvir a sua voz gaga, mais que sonorizante de amor fraterno.

— É sim — responde fechando o sorriso, ciente que eu já sabia a resposta.

Aí eu insisto:

— Pai, aquele pião que o senhor me deu, com a fieira de barbante branco, quando eu rodo ele na calçada as crianças dizem que é um “pião sapateiro”, que fica pulando, igual ao Pica-Pau dos desenhos animados. Acho que agora estou entendendo o que o senhor quer dizer. Esse toc, toc, toc, toc do martelo, no ferro igual a um pé, virado para cima, que o senhor bate na sua coxa, na roupa toda remendada pela vovó, é o motivo do nome sapateiro, não é?

A tarde sempre era assim: na volta do colégio e a sentar-me junto à sua bancada. Batidas de solas, mãos firmes no manejo de um negócio igual uma navalha que, uniforme e lindamente tocada pelos dedos do mestre, ia torneando o couro, dando formas de sapatos. Latas de colas, olhar fixo na arte e a certeza de que o suor que escorria de seu lindo rosto, torneado de um morenar meio aloirado, lhe garantiria o sustendo da família.

Meu pai se orgulhava da sua profissão, como o Paulo Rodrigues Barreto, da de alfaiate. Dois mestres, duas certezas assegurando o belo do artesanato.

Nasceram ambos nos sertões dos Campos dos Goitacázes. Paulo, com seus dedos endurecidos pelos anos da profissão herdada de seu pai, era a excelência no trato. Orgulhava-se ao me contar que havia feito os mais lindos ternos de linho, à mão, em quantidade superior a uma centena de pessoas no norte do Rio de Janeiro.

Djecyr falava de seus trabalhos em cromo alemão que duravam anos para que voltassem às mãos dele ou de outros sapateiros. Era calçado para nunca se acabar — orgulhava-se, também para mim, o velho pai guerreiro e herói.

Estes dois, entre tantos e grandes personagens de minha vida tinham, além de uma linda e harmoniosa arte no manejo das mãos, uma coisa em comum: eram extremamente políticos, por isso humanos em nossa época. Da Gama, meu pai, e Paulo, meu amigo, entendiam o mundo em sua formatação, com uma clarividência surpreendente e que enriquecia minhas concepções do mundo.

Claro, forçoso dizer, talvez, eles tivessem muitos amigos no poder. Porque sapato de “couro alemão” e “linho 120” não eram obras para as massas, para o povo trabalhador. Mas eles também faziam saltinhos, meia-solas, pregavam chapinhas em sapatos que acabavam de um lado, remendavam calças, diminuíam bainhas e faziam toda sorte de “biscates” que os punham frente à frente com a massa sofredora do povo da região onde habitavam. Jamais deixavam de socorrer o povo pobre e nunca negligenciaram na sua arte por isso.

Djecyr Nunes da Gama e Paulo Rodrigues Barreto sabiam que a degeneração capitalista haveria de destruir suas profissões. Anteviam que máquinas possantes prosseguiriam, sempre mais velozmente, fazendo ternos e sapatos em série, mas deformados e que encolheriam na primeira lavagem ou chuva, que se acabariam na primeira tropeçada na calçada e se encheriam de lama até os calcanhares...

E a produção fabril foi mesmo se transformando em coisa de baixa qualidade, a princípio baratas, depois caras e quase descartáveis. Sapatos e ternos saídos das grandes fábricas onde a força de trabalho não paga — ofertada pelos trabalhadores desempregados — animam ainda mais a fome dos genocidas. Tudo isso me faz, agora, entender melhor suas falas de uma beleza feita de coragem e convicção, até mesmo frente à certeza do fim de suas profissões.

Da Gama e Paulo Barreto acreditavam na via parlamentar para a chegada do povo ao Poder. Gama, com sua experiência no Sindicato de Curtumes e Derivados de Couros, em Buenos Ayres, onde morou e dirigiu o sindicato no governo Perón, e Paulo como velho petebista/brizolista. Claro que ambos desejavam ardentemente um governo do povo.

Estas duas mãos não mais irão cozer solas e panos. Seus corpos estão enterrados, estrumando com suas essências as terras que os cobrem. Eu lhes empenharia minha palavra, se pudessem ouvir, no entanto, que o menino/filho cresceu e o amigo/filho amadureceu. Não foi em vão a fé de ambos no socialismo, aquela que, incansável, transmitiam para quem merecesse ouvi-los.

Absorvi, desenvolvi e preciso honrar suas memórias, convicções e seus ídolos, que mesmo padecendo de precisão algumas vezes, eram passos honrados para a compreensão da Nova Democracia que vingará as lutas de tantos quanto aqueles dois, que tombaram à terra mas nos legaram o ensinamento dos primeiros passos...