É UMA PLATÉIA BRASILEIRA, COM CERTEZA

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A platéia e a imagem do artista
 
No mundo do espectáculo também tudo muda, tudo evolui, tudo passa. Ou quase tudo. Diariamente se cria e se reinventa conteúdos, novos gêneros e formatos aparecem, novas modas vão e vêm. E o show continua porque ninguém é de ferro e mesmo os workaholics, os tesos e os mancos precisam soltar os ombros e descontrair vez por outra. Para actividades como por exemplo comida, bebida e lazer, não há tempo de todo ruim na economia ou na política. Quanto mais nas artes. Na abundância como na crise, na guerra como na paz, algumas coisas são fundamentais para que as pessoas se sintam vivas. Entretanto, no espectáculo como em todas as actividades humanas, há produtores e consumidores, balcão e clientela, há palco e há platéia. Um não existe sem o outro. É sobre platéias que comento esta semana, pois mesmo não havendo quem nunca tenha desempenhado uma vez que fosse esse papel, em qualquer lugar do mundo, em Portugal, ao contrário do que acontece no Brasil, ainda há pouco quem se importe com esta componente, no espectáculo diário da vida ou na elite do show business.
 
Desde que plantei o meu dia a dia em Portugal, após 27 anos anos de Brasil, passei a observar atentamente também as platéias portuguesas, na sua evolução, características, influências e comportamento, e nas mais diversas vertentes do espectáculo. Nem precisaria dizer que, para isso, além de observar de cima para baixo, tomei parte nos mais diversos tipos de platéia, desde a fila da frente de teatros tradicionais, até ao rush dos concertos de hip-hop. Directo pela televisão, gravadas e editadas, ao vivo nos teatros, nos coliseus e nas praças, platéias brasileiras, platéias portuguesas e daí também comecei a olhar outras platéias. Ser platéia é divertido, vicia e não é prejudicial à saúde. Mas é inevitável fazer comparações, nesse tipo de observação, mesmo sabendo que a cultura, a língua e até o clima interferem no comportamento das pessoas. Há o que não se pode mudar, mas há o que se pode e não se muda, por puro estrelismo de quem está acima de qualquer platéia, ou se considera assim, ou está tecnicamente mal habituado.
 
Vou me referir a dois ou três exemplos para comentar sobre platéias portuguesas. E começar pelas platéias televisivas dos programas realizados em directo ou gravados, e que disputam as maiores audiências, os programas de variedades, nas manhãs e tardes dos canais abertos. Se estivesse a analisar a qualidade dos apresentadores, as pautas, os entrevistados, a música, a realização e edição em directo, deveria fazer isso programa a programa, pois embora em formatos parecidos, há os diferenciais. Apresentadoras com voz de cana rachada e que cansam, como a Júlia da TVI, apresentadores que pensam que tem piada e exibem mais caras e bocas que conteúdo - não que não tenham, vejam bem - como o Rui Unas e o Nuno Eiró, cantoras pimba todas iguaiszinhas, metidas a pop fingindo dançar sobre tacões que não as deixam sair do sítio, e um avulso das bandas de axé, que enjoam com as suas letras estúpidas. O excesso de lágrimas nas entrevistas e o excesso de entrevistas com colegas entrevistadores e outros do mesmo canal. Mas há bons apresentadores, dinâmicos como Jorge Gabriel e Júlio Isidro, sagazes como Malato - com muito boas partners, em todos os sentidos - boas duplas que dão espectáculo de espontaneidade como a Rita Ferro e o Nuno Graciano, boas bandas de apoio, bons realizadores, boa produção. Esses programas evoluíram com o passar do tempo, para muito melhor. Interagem na medida com o jornalismo, utilizam bem os novos meios, promovem debates, satisfazem bem nos momentos cor-de-rosa.
 
O problema  continua a ser as platéias, quase sem excepções a considerar nos programas de auditório da televisão portuguesa. O que vejo em todos os canais é mais ou menos o mesmo: rapazes e raparigas, senhoras e senhores bem distribuídos no espaço e confortavelmente sentados. Alguns auditórios lembram mesmo uma sala de chá daquelas bem monótonas, cheias de clarões pelo meio na imagem. Pessoas impecávelmente bem comportadas, apesar de em alguns casos estarem sob orientação de um animador. Mal se mexem, mal riem, mal mexem as mãos para bater as palmas perfeitamente sincronizadas, sem o menor à vontade para uma gargalhada, um pulo para o ar ou um grito fora do esquadro. Não é raro ver-se nas platéias da televisão portuguesa as mulheres todas com as perninhas postas da mesma maneira. Ou de pé fazendo uma coreografiazinha sem graça. Os programas melhoram em tudo a cada dia, menos nas platéias. Nem o Fernando Rocha, o "senhor anedota" consegue um efeito de proximidade com a sua platéia enquanto distribui dinheiro no seu concurso. O distanciamento é mesmo uma regra bem visível entre artista e platéia, mesmo no caso das mais participativas. Para confirmar a regra, cito algumas excepções a este viciado "design": Um programa de auditório que já não existe e que era apresentado pelo actor João Baião, outro para crianças apresentado pela Ana Malhoa - dois dos melhores animadores de televisão que Portugal tem e que estão no momento a trabalhar em outra actividade. Outra excepção para a aconchegante platéia do programa A Revolta dos Pastéis de Natas. No mais a impressão que dá é que nem um "pum" é permitido. Nem com a platéia dos Gato Fedorento. Aqui vai quase uma excepção para as platéias do extinto Levanta-te e Ri, ainda comportadas a mais para o tipo de anedotas contadas.
 
Nos espectáculos musicais ao vivo passa-se o mesmo. Quer no palco esteja um rancho folclórico típicamente português, ou uma escola de samba de inspiração brasileira, quer esteja uma banda de death metal ou hip-hop, a descrição é a mesma. E há muito boas bandas em Portugal, de rock, pop, música afro e tantos outros gêneros. Habitualmente, no miolo junto ao isolamento do palco algumas pessoas dançam conforme a música e não mais. E entre o isolamento e o palco, na maioria dos casos, a distância funciona como um vácuo na interação com o público. No último concerto aberto em que fui, o vocalista desceu o palco e veio para a área isolada receber os cumprimentos do público, para quebrar o gêlo. Mas não foi capaz de pedir que cantassem qualquer coisa com ele. O palco altíssimo, e nem por isso a banda conseguia se dirigir às pessoas posicionadas ao fundo.  Recentemente fui assistir a um outro espectáculo aberto, com um artista que é autor de verdadeiros hinos, refrães conhecidíssimos que nunca deixam de tocar nas rádios. Ele é um daqueles ícones da canção portuguesa engajada com a revolução. Tomo-o como exemplo porque ele nunca sai de moda, inova em parcerias internacionais incríveis, cativa aos mais jovens, toda a gente sabe cantar as suas composições. Além do que é acompanhado por instrumentistas soberbos. Mas não consegue incendiar uma platéia. Durante a apresentação, observei atentamente a reacção das pessoas, todas de pé, com a letra na ponta da língua, mas cantando baixinho e mexendo timidamente a cabeça ou um pézinho, quando muito. Era um deus a cantar para devotos respeitosos. O artista, cujo nome não digo porque ele não é o único que não consegue temperar o público em Portugal - nem a Ivete Sangalo com o seu refrão (eca!) "puêra" consegue fazer um estádio todo tirar os pés do chão, em Portugal, como fez no Maracanã. Ele até fez algum esforço para entrosar-se com a assistência, mas a distância física também o intimidava.
 
Não sei se consegui diferenciar uma platéia portuguesa de uma brasileira em todas as suas nuances. A intenção aqui também não era esculachar ninguém, mas chamar a atenção dos produtores de televisão, de espectáculos e também dos artistas portugueses. Enfim, de quem está nos palcos da vida e por detrás desses. Para emitir a opinião que é minha, de que, mesmo em Portugal, nem sempre a culpa pelo problema da falta de entrosamento é da platéia. Quem se põe na frente de um palco para assistir a um espectáculo e ainda paga por isso, é porque acha que ali está alguém que é um pouco deus para si, que faz algo fora do comum. A platéia espera e anseia por receber estímulos para reagir. E os profissionais portugueses do espectáculo, que tanto aprenderam com os brasileiros e se referenciam neles no  campo da ficção televisiva, da publicidade e da música, deveriam realizar no Brasil estágios prolongados em termos de formação de platéias. Formar e estimular platéias é muito mais do que colocar diante delas um exército de animadores que mais parecem bombeiros, a puxar reacções ensaiadas e a conter espontaneidades. Procurem ver pelo Youtube uma determinada gama de shows ao vivo e programas de televisão produzidos nos dois países e observem o que eu vejo. Foi depois de ter assistido a um vídeo com os Skank, uma banda pop brasileira diante de uma platéia numerosa e enlouquecida, cantando "Três Lados", que resolvi escrever sobre este lado: a platéia. Não vi nenhum show dos Skank em Portugal, mas vou procurar as imagens e aposto com vocês se alguma ganha desta que vos mostro no link abaixo. Divirtam-se.
http://www.youtube.com/watch?v=VsgGdRJQFHg
 
Ana Lúcia Araújo
Na platéia das platéias