Trem na Linha ou Linha sem Trem?

De que vale a linha sem o trem?

O desenvolvimento da indústria ferroviária nacional dotou nossas ferrovias de locomotivas, vagões e carros de passageiros, reduzindo o material rodante importado. Contudo, a frota mineira de locomotivas, em diferentes períodos, sofreu consideravelmente com altos índices de imobilização, dada a dificuldade de se conseguir peças de reposição. Encostadas nos depósitos, as locomotivas avariadas impossibilitavam os programas de manutenção preventiva, porque não se podiam afastar temporariamente as máquinas em uso, sem outras para substituí-las. Essa prática gerava um círculo vicioso, pois se exigia mais das locomotivas em bom estado e essa sobrecarga e a manutenção deficiente resultavam em novas imobilizações.

As soluções encontradas para o reparo das locomotivas eram, comumente, a cessão e a permuta de peças entre oficinas e o “canibalismo”, ou seja, a retirada de peças das máquinas avariadas para o conserto de outras. Contudo, da criatividade dos ferroviários surgiam outras soluções como a relatada abaixo, sobre um método de fabricação de rodas de locomotivas, a partir do reaproveitamento de sucata ferroviária, desenvolvido nas oficinas de Divinópolis, da Rede Mineira de Viação. Falando para uma platéia sobre as rodas de ferro fundido coquilhadas,

O representante da RMV detalhou com minúcias todo o processo produtivo adotado em Divinópolis, o que permitia atender à demanda de rodas daquela ferrovia. Terminada a palestra e iniciados os debates, um dos participantes indagou: “Doutor, qual a composição química das rodas de ferro fundido fabricadas em Divinópolis?” Após um pequeno silêncio o conferencista respondeu: “Nós utilizamos a seguinte composição, por roda de 28″ de diâmetro: 200kg guza, 1,30m de trilho TR-25, 26 Tirefond, 5 placas de apoio, 16 sapatas de ferro fundido usadas e 32 pregos de linha” (SHOPPA,1999: 39).

Perdas econômicas nos caminhos coloniais e ferroviários eram provocadas pela existência de outros caminhos. No período colonial, a abertura de novos caminhos e de picadas era considerada crime de lesa-majestade, já que as únicas vias autorizadas para a circulação de pessoas, animais e mercadorias eram as estradas reais. Apesar do patrulhamento das estradas, o contrabando e o extravio se serviam de rotas alternativas às oficiais, fugindo do controle do fisco nos registros e alfândegas.

Para as vias ferroviárias, a existência de outros caminhos terrestres teve significados diferentes.

Na época em que o trem monopolizou os transportes terrestres, os caminhos e estradas cumpriram o papel de alimentador ou distribuidor do transporte ferroviário.

A produção das fazendas era escoada por meio de tropas até a estação ferroviária, onde era embarcada para os mercados consumidores. Na estação também, as tropas e comerciantes recebiam mercadorias a serem comercializadas ou consumidas na região. Com o passar do tempo, a ferrovia assistiu ao processo de transferência de suas cargas e passageiros para a rodovia, onde eram continuamente transportados por caminhões e ônibus, que muitas vezes, faziam percurso paralelo ao dos trens.

Todavia, a existência de caminhos terrestres, ainda que estranhos à natureza dos transportes ferroviários, sempre afetou a produção da ferrovia, pois eram exigidas muitas passagens de nível para cruzar as linhas férreas. E as perdas econômicas decorrentes das passagens de nível não se limitavam à ferrovia.

O trânsito das vias públicas – de veículos e de pedestres – cruzando o leito da ferrovia implica, necessariamente, na sua interrupção quando há a concomitância de tráfegos, visto ser o ferroviário prioritário. A retenção do tráfego das vias públicas interfere em menor escala nos serviços ferroviários, pois o fechamento das barreiras – quando existem – ou a mera presença das linhas assegura-lhe a preferência; todavia, medida de cautela usualmente adotada mediante a evidente periculosidade das passagens de nível exige a redução da marcha dos trens, o que, por sua vez, representa queda de receita para a ferrovia que tem a fluidez de seu tráfego restringida. (CAMPOS, 2002: 137). Cada passagem de nível representava despesas.

Além dos custos com a sua construção, era preciso sinalizá-la e, dependendo da sua localização, manter vigilância no local. A regulamentação das passagens de nível estabelecia que a entidade responsável pela construção da via mais recente é que deveria arcar com tais custos; apesar da lei e da antiguidade das ferrovias, geralmente, eram sobre as estradas de ferro que pesavam tais responsabilidades. São numerosos os processos judiciais que envolveram empresas ferroviárias e União, Estados ou Municípios para a definição das competências de construção e manutenção de passagens de nível. Esse problema se agravava com a intensificação do processo de urbanização, aumentando os acidentes nas passagens de nível, e, conseqüentemente, as causas judiciais e as indenizações. A solução definitiva do problema – construir viadutos, passarelas e passagens inferiores – igualmente era motivo de novos conflitos para a definição da jurisdição de cada entidade envolvida.

O MUNDO DO TRABALHO NOS CAMINHOS

Para a construção e a conservação das estradas reais e de ferro muitos braços foram exigidos.

O Caminho Novo era fruto de um projeto do governador Artur de Sá e Menezes para melhor escoar o ouro recém descoberto das Minas. Seu executor, Garcia Rodrigues Pais já era figura expressiva no novo território, desde que assumira os encargos de capitão-mor e de administrador das entradas e descobertas de minas. O caminho que construiu empregou a única mão de obra possível à época: a escrava.

Sabe-se que a vida útil de um escravo na região da mineração era breve: cerca de sete anos. Essa baixíssima expectativa de vida devia-se às péssimas condições de trabalho da escravaria à época, sujeita a longas horas de labuta dentro de córregos e rios ou em galerias, enfrentando baixas temperaturas e recebendo uma subalimentação. O trabalho de construção da estrada, exigindo a transposição de áreas de mata fechada, alagadas e insalubres, também implicava em duras rotinas de trabalho que geravam acentuada perda de escravos. Assim, após um ano e meio de trabalhos, as obras de Garcia estavam paralisadas devido à falta de trabalhadores. Poucos escravos ele conseguiu recorrendo ao governo e aos moradores do Rio. A empreitada só foi concluída porque Garcia se associou ao cunhado, Domingos Rodrigues da Fonseca Leme, que entrou no negócio com dinheiro e escravos.

Se na colônia a mão de obra escrava era a regra para a qual não havia exceção, no império das  linhas férreas, posterior à Lei Eusébio de Queiroz que pôs fim ao tráfico oceânico de negros, a  promessa de progresso das ferrovias levou à negação formal das velhas relações de trabalho.

Havia legislação impedindo o uso de escravos na construção das estradas de ferro. Abaixo, a  regulamentação que orientaria os trabalhos da D. Pedro II, Central do Brasil, após a República:

A companhia se obrigará a não possuir escravos, a não empregar no serviço de construção e custeio do caminho de ferro senão pessoas livres que, sendo nacionais, poderão gozar da isenção do recrutamento, bem como do serviço ativo da Guarda Nacional, e sendo estrangeiro, participarão de todas as vantagens que por lei forem concedidas aos colonos úteis e industriosos. (Lei nº 641, de 26 de junho de 1852, artigo 1º, parágrafo.

Porém, em país ainda carente de relações capitalistas e com uma forte tradição no preconceito  contra o trabalho, um “jeitinho” sempre se deu. À falta de braços nas ferrovias burlava-se a proibição do uso de escravos por meio da terceirização dos trabalhos. Esse expediente não foi incomum porque os contratos para a construção das estradas eram divididos em seções (subdivididas em trechos, muitas vezes), ficando cada parte da estrada sob a responsabilidade de um empreiteiro que, terceirizando os serviços, cumpria as exigências legais e contratuais, apesar do emprego do trabalho servil.

A prática era então alugar escravos das fazendas próximas aos canteiros de obras ferroviárias. A declaração do engenheiro inglês encarregado dos trabalhos de construção da linha da D. Pedro II, ainda em território fluminense, atesta a prática do uso de trabalho escravo:

Outra possibilidade era recorrer-se à importação de mão-de-obra. Na antiga Estrada de Ferro  D. Pedro II, ainda na década de 1850, mesmo com os altos salários oferecidos, faltavam braços

para a construção em algumas regiões insalubres. Apelou-se então para solução já gasta mundo afora: trabalhadores chineses foram recrutados. Somente na primeira seção da ferrovia, mais de cinco mil chineses pereceram em regiões de alagados, vitimados pela malária que já havia levado à morte muitos outros trabalhadores nacionais.

Se a mão-de-obra escrava foi fundamental na construção das estradas reais e, ainda que menos nas de ferro, na operação dos transportes nessas vias, ela não foi exclusiva.

Parte considerável do pessoal das tropas coloniais e provinciais era composta de escravos. A tropa era formada de vários lotes de animais - grupos de sete burros ou mulas – e, geralmente, cada lote ficava a cargo de um escravo.

A pesquisa do historiador Alcir Lenharo sobre o abastecimento da Corte no período de 1808-1842, incluiu uma investigação sobre a economia dos caminhos mineiros e fluminenses.

Dados levantados pelo historiador em registros que fiscalizavam a exportação para o Rio de Janeiro, no mês de dezembro de 1829, esclarecem sobre a mão de obra empregada: nas “porcadas”, ou seja, nas varas conduzidas e tributadas nos caminhos, trabalhavam 107 pessoas, sendo 95 livres e 12 escravos. Nas boiadas, dos 91 trabalhadores, 29 eram escravos. Em relação às tropas, a participação dos escravos era bem diferente:

A totalidade dos empregados das tropas é bem superior aos das boiadas e “porcadas”: 241. E  a participação de escravos é maior ainda: 112, quase a metade do total dos empregados.

Novamente em Minas é que os escravos são em maior número. É comum, inclusive, que escravos apareçam à testa de tropas mineiras na função de tropeiros (LENHARO, 1979:97).

As explicações para tal fato encontram-se na economia do ouro. Quando abundante, o ouro exigiu incontáveis braços escravos que tornaram a Capitania de Minas Gerais a de maior população e também a de maior contingente de escravos.

Decadente o ouro, os escravos foram transferidos para outras atividades econômicas.

Ao final do século XVIII e nas primeiras décadas do XIX, a mão-de-obra escrava era intensivamente utilizada nas propriedades de subsistência mineira; nas épocas de maior folga da produção ou nos instantes posteriores da safra, os escravos podiam ser deslocados para o setor da distribuição (LENHARO, 1979: 98).

Já nas estradas de ferro, o trabalho escravo era proibido nos serviços de tráfego. Considerando-se as implicações da proibição do tráfico negreiro, de 1850, as ferrovias atenderam duplamente aos interesses dos grandes cafeicultores: prestou-lhes serviços de transporte rápido e barato e dispensou os escravos ocupados no manejo das tropas para os trabalhos da lavoura cafeeira.

De acordo com o Ministro da Agricultura de 1864, o fazendeiro também dispensava até o “pessoal mais numeroso, que se empregava em estragar o melhor de suas terras nas plantações destinadas à alimentação das mesmas tropas”.

Sobre o trabalho no mundo das tropas e no ferroviário, é interessante assinalar, em ambos os  contextos históricos, a forte presença do elemento familiar. No Sul de Minas, no século XIX, os proprietários da região tinham suas próprias tropas e, em geral, faziam uso do trabalho dos seus filhos tropeiros (LENHARO, 1979: 94). De acordo com Saint-Hilaire, que viajou por Minas no século XIX, numa fazenda, um dos filhos torna-se o condutor da tropa, outro se encarrega de cuidar desta, outro das plantações, e todos, indiferentemente, ordenham as vacas e fazem queijos (SAINT-HILAIRE, citado por LENHARO, 1979: 95). Dentre esses tropeiros, era grande o número de jovens, com idade entre 20 e 25 anos, havendo registro até de tropeiro de 14 anos.

Não deve surpreender a revelação de que um jovem tropeiro, de apenas 14 anos, chefiasse uma equipe composta de 5 escravos. Na organização do trabalho rural, essa era uma idade em que o jovem já se integrava no universo dos adultos e, conseqüentemente, dividia com eles as tarefas econômicas básicas para a obtenção dos meios de subsistência. No caso de um jovem tropeiro como este, a iniciação no trabalho era marcante e definitiva. O tropear era tido como uma atividade rústica e desgastante e constituía-se num ritual de aprovação que possibilitava ao jovem tropeiro acumular experiências e poder, gradativamente, disputar outras funções a que ainda não tivera acesso. (LENHARO, 1979: 96).

No meio ferroviário, a influência familiar também era constante e podem ser atestadas por essas duas referências, dentre tantas outras existentes ou observadas no cotidiano desse meio:

O filho do agente, preso todo o dia na estação, cresce aprendendo a tarefa doméstica, traduz o telégrafo de ouvido e vira telegrafista (BENÉVOLO, 1953: 48).

Filho de ferroviário, aprendi, há mais de quatro décadas, a amar a ferrovia, e sobretudo, a conhecer o homem que nela trabalha [...] (FERREIRA, Márcio Maia1. Prefácio. In: LARA: 1988).

De fato, são numerosos os casos de filhos e netos de ferroviários que seguiram os caminhos profissionais de seus parentes, seja nos ofícios da linha, do tráfego ou da tração. Dada a multiplicidade de funções exigidas pelo transporte ferroviário, das burocráticas às técnicas, todos podem encontrar em uma estrada de ferro um “habitat” adequado ao seu gênio e aos seus instintos. (BENÉVOLO, 1953: 46).

Uma diferença marcante entre os empreendimentos das tropas e os ferroviários refere-se à propriedade dos mesmos. Na lida da estrada, o tropeiro era mais um trabalhador, que dividia com escravos ou empregados os fazeres diários. Contudo, ele não era um mero condutor de tropas, pois era também negociante que comprava ou revendia produtos. Muitos tropeiros eram também proprietários de terras, que se encarregavam da venda de sua produção, reduzindo custos e obtendo maiores vantagens no preço final. Essa experiência não foi conhecida no meio ferroviário, pois nas companhias e empresas trabalhavam, exclusivamente, os empregados, dos diretores aos “piolhos” de linha.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A POLÍTICA ECONÔMICA E OS CAMINHOS

A localização geográfica e o relevo de Minas Gerais desde cedo impuseram pesado ônus a sua economia, pois os fretes elevam os custos de produção e os preços dos produtos. Para o acesso ao mercado e aos portos do Rio de Janeiro, a transposição da Serra do Mar e da Serra da Mantiqueira, sempre implicou em fretes altos. No período colonial, o esforço dos animais na subida de serras era levado em conta no preço a pagar pelos que requeriam os serviços dos tropeiros. Na determinação do valor do frete, os tropeiros também consideravam o peso e a natureza da carga, pois a sua fragmentação exigia que se mexesse nela a cada parada e, não raro, que muitas paradas fossem ocasionadas pela necessidade de acomodar melhor a carga. Acontecia de em um só dia de viagem, os animais serem descarregados e novamente carregados, várias vezes, principalmente, se houvesse a necessidade de cruzar rios e córregos ou de passar por trechos muito estreitos (LOPES, 1984:50).

A política tarifária das ferrovias, de maneira geral, sempre foi considerada inadequada e, para muitos críticos da má situação das ferrovias públicas brasileiras, aí residia a principal causa da ineficiência do setor, pois as tarifas cobradas eram insuficientes para permitir novos investimentos.

Diferentemente do restante do Brasil, na região Sudeste, muitas tarifas baixas foram justificadas pela grande concentração de cargas.

O inconveniente da fragmentação da carga também foi enfrentado pela ferrovia na época em

que ela transportava qualquer coisa, para qualquer lugar. Como uma grande estrutura de apoio era necessária, toda estação de razoável movimento contava com armazém para depósito de mercadorias a serem despachadas e/ou recebidas. Expedição, despacho, carga e descarga, baldeação, entrega, eram algumas das atividades rotineiras que exigiam grande organização e numeroso efetivo das estradas de ferro. Era preciso, a cada parada do trem, verificar as mercadorias e encomendas a serem carregadas e descarregadas e acomodá-las devidamente nos vagões ou nas plataformas das estações e pés-de-estribo, as paradas desprovidas de estações, mas usadas para embarque/desembarque.

E, onde está a riqueza, está também o fisco. Nos caminhos coloniais, os registros fiscalizavam a importação e a exportação das Minas. O ouro, claro, era o produto mais fiscalizado. No período das casas de fundição, cada minerador levava até lá seu ouro que era fundido separadamente, pois havia diferenças na qualidade do metal. Cada barra era marcada com o quilate e o peso do metal e cunhada com o selo real. Seu proprietário recebia, para cada barra, uma guia que discriminava essas informações e comprovava o pagamento do quinto. Na verdade, em muitos casos, o imposto não era de um quinto, mas de um quarto, porque além do pagamento dos 20% da Coroa Portuguesa, cobravam-se mais 5% adicionais pelas despesas de fundição. E, claro, o governo pagava pela oitava de ouro um valor abaixo do de mercado. Nos registros, os funcionários da Coroa conferiam a preciosa carga e sua documentação.

Todos os produtos eram tributados pesadamente para garantir os ganhos da metrópole. No século XIX, as administrações provinciais de Minas Gerais concederam isenções fiscais para incentivar e diversificar a economia mineira, beneficiando a agricultura e a pecuária, principalmente.

Para o período provincial, de maneira geral, foram as importações de maquinário agrícola e industrial que gozaram de maiores benefícios fiscais.

Sendo as estradas de ferro predominantemente estatais – federais ou estaduais -, os benefícios tarifários também privilegiaram diversos setores econômicos, em diferentes épocas. Café, água mineral, milho, algodão, e muitos outros produtos mineiros contaram com tarifas especiais na  ferrovia, em diversos contextos históricos. Contudo, nenhum produto valeu-se tanto de privilégios como o minério de ferro, que, a partir da segunda metade do século XX, foi tanto o xodó, quanto o vilão do transporte ferroviário público, a cargo da RFFSA.

Carga tipicamente desejável da ferrovia, o minério era transportado em composições únicas, com origem e destino também únicos, percorrendo centenas de quilômetros. O trem completo significava ganhos para a estrada de ferro que não precisava pará-lo em pátios para realizar manobras de recomposição, deixando ou recebendo novos vagões. Contudo, as tarifas preferenciais que incidiam sobre o transporte de minério, que ocupou durante anos, com quase exclusividade, a malha e o material rodante da empresa, pouco recompensava os esforços das administrações ferroviárias.

Os negócios que envolviam operações em trechos exclusivos das empresas ou o uso de seus próprios vagões, muitas vezes, também resultavam em ganhos ínfimos ou prejuízos para as ferrovias públicas. Esse tratamento vip dado ao minério impediu o melhor atendimento de outros setores econômicos do Estado, como o cimenteiro que, nos anos 80, alegou estar custeando, com suas tarifas elevadas, a quase gratuidade concedida ao minério de ferro (CAMPOS, 2002: 114).

O desenvolvimento do transporte ferroviário e sua crescente integração com o sistema portuário levaram à criação de portos secos em Minas Gerais.

O estado conta atualmente com portos secos em Varginha, Juiz de Fora, Uberlândia, Uberaba e Betim.

Este último, o Porto Seco Granbel, às margens da BR-381, administrado pelo Grupo Usiminas, tornou-se o primeiro porto seco industrial do país, funcionando como alfândega e oferecendo isenção de tributos sobre insumos e produtos importados e nacionais, para as indústrias situadas na área do entreposto aduaneiro.

INTERMODALIDADE NOS CAMINHOS DE MINAS

A integração acima referida remete a um dos aspectos a ser ressaltado na história dos transportes mineiros: a intermodalidade. Cada modal de transporte apresenta características próprias que o fazem preferível a outro, em determinado contexto histórico e geográfico.

Em Minas, a integração de vias terrestres e fluviais foi, primeiramente, ditada pela necessidade e não por opção.

No período colonial, o Caminho Velho, terrestre no maior trecho, contava com embarcações para a travessia de rios e com parte marítima em território fluminense, que implicou em riscos para o transporte do ouro de Parati até o porto do Rio de Janeiro, na necessidade de criação de fortes ao longo da costa e na instalação de canhões em muitas ilhas.

A viagem marítima foi abandonada em função da construção do Caminho Novo, via terrestre, que, contudo continuou a contar, durante certo tempo, com as embarcações para a travessia de rios. Já a tradição intermodal do Caminho da Bahia tem história mais duradoura. Seus três séculos registram uma integração crescente entre as vias fluviais e as terrestres; somente nas últimas seis décadas, verificou-se uma vertiginosa queda dessa tendência. Dentre as vias terrestres aí consideradas, contam-se simples picadas, caminhos, estradas, rodovias e estrada de ferro.

A história da navegação no Rio São Francisco tem sua origem nas embarcações indígenas a remo.

No trecho do Médio São Francisco, de Pirapora a Santana do Sobradinho, na Bahia, seus séculos de história registram que ela se desenvolve a partir das forças braçal, eólica, a vapor e a explosão (PEREIRA, 2004:473).

A história da colonização das regiões norte, noroeste e parte da área central de Minas Gerais, servidas pela bacia do São Francisco, compreende descrições de antigas pirogas ou canoas indígenas, feitas de uma única árvore de casca duríssima, que tinha seu lenho mole escavado. Ibiragara, tamboril, vinhático e cedro eram algumas das madeiras usadas para a confecção dessas canoas que foram usadas para a pesca, para a condução de ribeirinhos e, mais tarde, para o transporte de cargas. Ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX, diferentes embarcações foram usadas no São Francisco.

Usando a força de braços humanos, canoas, ajoujos, barcas e paquetes se tornaram cada vez mais comuns.

Os ajoujos eram embarcações formadas pela união de duas ou três canoas por meio de paus roliços atados com tiras de couro. Sobre essa estrutura, colocavam-se tábuas ou paus finos para formar um piso. Havia ajoujos que erguiam uma espécie de engradado sobre o piso, para transportar animais.

As barcas variavam de tamanho – de 60 a 105 palmas de comprimento – e contavam com remeiros ou barqueiros que usavam varas para impulsioná-las.

Mais raras eram as dotadas de vela. Havia também as barcas de passagem que ligavam as margens dos rios e os paquetes, de 5 a 12 metros de comprimento, cujos fundos eram peças inteiras, escavadas de troncos de árvores (PEREIRA, 2004: 473-480).

A era dos vapores construiu a gênese de sua história ao longo da segunda metade do século XIX.

Interessado em implantar a navegação a vapor, o Governo Imperial incumbiu o alemão residente no Brasil, Guilherme Fernando Halfeld, de realizar um estudo sobre as condições de navegabilidade da bacia do São Francisco. De 1852 a 1854, Halfeld realizou o levantamento hidrográfico da bacia, de Pirapora até o Atlântico. Ele também foi encarregado de pesquisar a existência de minas de carvão mineral para o abastecimento das futuras embarcações a vapor.

Constatada a inexistência do mineral, o engenheiro recomendou que o fornecimento de combustível para as caldeiras dos barcos a vapor poderia, para os primeiros vinte anos de operação, ser obtido por meio do desmatamento das margens do São Francisco e de seus tributários.

Outra tarefa que coube a Halfeld foi o estudo da transposição do rio, com o desvio das suas águas até o Ceará.

O início da navegação a vapor no São Francisco deu-se em 1871, quando o vapor Saldanha Marinho partiu de Sabará e atingiu Juazeiro, na Bahia. A partir dessa viagem, diversas companhias - estaduais ou particulares – operaram vapores para transporte de cargas e de passageiros. Viação Central do Brasil, Companhia de Navegação do Jequitinhonha, Comissão Melhoramentos do Rio São Francisco, Companhia Viação Brasil e Empresa Viação do São Francisco foram empresas que exploraram a navegação a vapor até a primeira década do século XX. Nesse período, sobressaiu-se Januária, a antiga Salgado do século XVIII. A “Flor do Sertão”, Januária, tornou-se o principal porto e entreposto comercial do trecho mineiro do São Francisco.

Foi a chegada da Central do Brasil em Pirapora, em 1910, que levou esse município a superar Januária como principal porto mineiro. A integração da via férrea com a fluvial garantiu, na primeira metade do século, a ligação das regiões brasileiras Nordeste e Sudeste, pois a ligação ferroviária entre as duas regiões só foi efetivada em 1947, em Monte Azul. O entroncamento da Central do Brasil com a Viação Férrea Federal Leste Brasileiro, no norte de Minas, se deu em época em que ainda não havia rodovia pavimentada que propiciasse outra alternativa de transporte exclusivamente terrestre. Empresas importantes na navegação a vapor do São Francisco, a partir da segunda década do século XX foram a Companhia Indústria e Viação Pirapora, a Navegação e Comércio do São Francisco, a Nascimento e Irmãos, a Navegação Mineira do Rio São Francisco, a Viação Baiana do São Francisco, a Wilson Sows e Cia., a Comissão do Vale do São Francisco, a Companhia de Navegação do São Francisco.

A segunda metade do século, marcada pelos investimentos que priorizaram o transporte rodoviário, foi também o período da decadência do transporte do sistema ferro-hidroviário. Uma iniciativa que procurou minimizar a prevalência da rodovia na matriz de transporte mineira e brasileira foi a da construção do porto de Pirapora e de um ramal ferroviário para ligá-lo ao distrito industrial local.

No dia 12 de junho de 1981 foi inaugurado o porto fluvial de Pirapora, dez anos após a assinatura do acordo firmado entre a União e o Estado para a sua construção. A solenidade de inauguração das instalações portuárias marcou também o início das obras de construção do ramal, de cerca de 10 km, que partia da primitiva Linha do Centro da Central7 , no trecho entre Várzea da Palma e Pirapora. O ramal contou com projeto da Superintendência Regional Belo Horizonte da RFFSA e foi construído pelo 2º Batalhão Ferroviário do Exército, com sede em Araguari. No ano seguinte, ele entrou em operação, atendendo a diversas indústrias da Companhia de Distritos Industriais de Pirapora.

Muitas estradas de ferro de Minas foram construídas com vistas a um porto, marítimo ou fluvial. A Oeste de Minas, que nascera de concessão para implantação de linhas férreas da Estação de Sítio (hoje Antônio Carlos), da E. F. D. Pedro II, até um trecho navegável do Rio Grande, teve em Angra dos Reis o seu principal porto. Seu Ramal de Pitangui, no trecho da bitola de 0,76 m, esteve nos planos da administração ferroviária que o construiu, dentre outros motivos, como meio para viabilizar a integração da ferrovia com o Rio Pará, afluente do São Francisco.

Ao longo do século XX, as condições de navegabilidade dos rios mineiros, principalmente do São Francisco, foram afetadas pela generalização e intensificação das ações predatórias de desmatamento, de extrativismo e outras de cunho poluidor.

Dados o assoreamento e a degradação dos rios, a integração da ferrovia é hoje feita com os portos marítimos e com as rodovias.

A REVOLUÇÃO DOS TRANSPORTES

Os caminhos coloniais e ferroviários estão associados a grandes mudanças operadas nos contextos político, econômico, social e cultural de Minas Gerais.

Muitas dessas mudanças estão relacionadas com uma característica do setor de transportes, que é a necessidade de grande inversão de capitais antes que os lucros sejam colhidos. Isso se deu com as tropas que trafegavam nas estradas reais e imperiais e com as ferrovias dos períodos imperial e republicano.

A formação de uma tropa exigia elevados recursos, o que explica a presença, nesse ramo de atividades, para os primeiros tempos da exploração de ouro, de comerciantes e de proprietários de terras provenientes de outras regiões brasileiras, onde encontraram condições para acumular capital a ser investido na região mineradora. O tamanho da tropa era determinado pelas condições financeiras do seu proprietário que precisava adquirir os animais, remunerar o pessoal, comprar escravos, alimentar os animais e os homens durante a viagem, comprar utensílios para o preparo dos alimentos, reparar ou renovar constantemente os arreios, os tecidos, as bruacas e outros apetrechos que se desgastavam com o uso. Quanto maior a tropa, maior a capacidade de transporte e o lucro, porém, mais elevada a despesa.

O capital financeiro necessário à construção das ferrovias era, em grande parte, proveniente do exterior, pois os custos de implantação de uma estrada de ferro excediam os dos tradicionais

negócios brasileiros à época, além de despertar desconfiança dos investidores nacionais que desconheciam esse meio de transporte. Na estrada de ferro, o principal elemento a determinar a capacidade de transporte são as condições da via. Em condições ideais, maior a bitola, maior a capacidade e a produção de transporte, mas mais elevados os custos de construção e de manutenção.

Gastam-se mais com aterros, cortes, trilhos, dormentes, pregação de trilhos, obras de arte como pontes, túneis, bueiros, etc., pois tudo deve atender ao trem que é mais largo. Não é outra a razão que explica a pluralidade de bitolas em território mineiro: variando de 0,60 m a 1,60 m, buscou-se sempre a economia. Das condições da via igualmente depende a capacidade de tração. Trens enormes e pesados, tracionados por várias locomotivas, exigem uma via permanente mais larga e, claro, o material rodante neste caso, também é mais caro.

Tropas e ferrovias significaram para seus contextos históricos uma inovação em muitos sentidos.

Além dos altos custos e da especialização dos transportes, elas inauguraram novas formas de relações comerciais; no caso específico da estrada de ferro, relações verdadeiramente capitalistas.

O nível tecnológico exigido, a complexidade da operação desses transportes, a racionalidade na formação da tropa e do trem, a diversidade de funções requeridas para o transporte, a indústria direta ou indiretamente fomentada por esses transportes, são elementos a serem considerados no papel revolucionário que desempenharam na economia mineira e nacional.

Novidade para os contextos históricos dos caminhos coloniais e ferroviários foi o surgimento de uma burocracia que tanto se fez visível na hierarquia que ordenava os diversos fazeres, quanto na atenção com a documentação que conformava as práticas burocráticas. No período colonial, muitos tropeiros mantinham registro contábil e passavam recibos dos serviços contratados, não se fiando somente na oralidade para o controle de seus acordos e negócios. Nos postos de arrecadação dos direitos de entrada e de impostos sobre mercadorias se fazia rigoroso registro de tudo.

Um escrivão fazia anotações que incluíam a identificação e a descrição do viajante, a medição e quantificação de suas mercadorias e a quantia a ser paga. Houve época, em que os comerciantes tinham autorização para quitar a dívida no regresso da viagem, após efetuarem a venda de seus produtos, o que implicava em guias especiais a serem emitidas para o controle do pagamento devido futuramente. Durante os períodos em que vigoraram as proibições de circulação de ouro em pó ou de certas moedas nas Minas, os viajantes precisavam trocar seu ouro ou moedas nos registros, o que também resultava em novos documentos. E, conforme visto anteriormente, as guias e documentos das casas de fundição, que atestavam a propriedade do ouro e o pagamento do imposto, eram fiscalizadas. Boiadas, porcadas, carneiradas e tropas eram também minuciosamente registradas, para o pagamento dos direitos da Coroa.

Ao longo dos caminhos reais, os núcleos urbanos que ganhavam o status de vilas também conheciam maiores rigores em sua burocracia. Símbolos da nova condição desses núcleos eram a Casa de Câmara e Cadeia, o pelourinho e o livro onde se registrava o termo de inauguração da vila.

Na era da ferrovia, acontecia coisa semelhante. A inauguração da estação também era registrada em livro próprio, que ficava em suas dependências e no qual, posteriormente, eram anotadas as principais ocorrências ligadas à sua operação e jurisdição: acidentes, incêndios, roubos e outras.

Havia também, livros de reclamações do público, onde irregularidades na prestação dos serviços ferroviários eram criticadas e clientes e usuários da estrada buscavam meios de serem ressarcidos de seus prejuízos. Esses documentos revestem-se, hoje, de suma importância para o conhecimento de fatos históricos, porque, em muitos casos, são as únicas fontes conhecidas para a reconstrução da história ferroviária.

Nas estradas de ferro, a operação dos transportes exigia todo tipo de registro, havendo formulários próprios para tudo. Os telegramas em serviço também implicavam em grande produção de documentos, apesar da linguagem enxuta. Na seqüência, um exemplo de economia dessa linguagem colhida do anedotário ferroviário. Se fato verídico, não dispomos de informações sobre local de ocorrência ou data; se fictício, não desmerece o que o motiva: a crítica à burocracia. E, claro, maior graça lhe confere o nome do protagonista que remete à nacionalidade que mais inspira nosso humor:

Certo dia, um passageiro despachou uma cesta de verdura, porque o passageiro não podia levá-la consigo dentro do carro, tendo o despacho sido feito através da guia nº 45. No mesmo trem, com guia nº 38, viajava despachado, no carro-bagagem, um cabrito. Mas, acontece que, durante o percurso, o cabrito comeu a verdura e quando o trem chegou ao destino, a cesta estava vazia. Aí o chefe do trem telegrafou ao seu superior, nestes termos:

“Sr. Chefe do Movimento. A guia nº 38 comeu a guia nº 45. Condutor Manoel.” (SCHOPPA, 1999: 66).

A diversidade de funções exigidas pelos transportes de tropas e ferrovias também requeriam trabalhos especializados. Para as tropas, por exemplo, relatos de viajantes estrangeiros que percorreram as vias coloniais e imperiais dão-nos conta da rotina e da especialização dos trabalhos que envolviam o tropeiro, à frente da caravana, que muitas vezes contava com um ajudante; o arrieiro que cuidava de preparar os animais, arrumando-lhes as cargas e, nas paradas, descarregando-os e raspando-os com uma raspadeira; e os tocadores, que conduziam os animais na viagem.

Nas estradas de ferro, a especialização e o contingente de trabalhadores eram muito maiores  dividindo-se nos setores ligados à linha e seus equipamentos, do tráfego e da tração. E, seguindo tradição inaugurada por Pero Vaz de Caminha, autor do primeiro documento da História do Brasil, que ao final do relato das primeiras experiências em terras brasileiras, pediu ao rei de Portugal um emprego para parente seu, não faltaram práticas clientelistas e nepotistas. Nesse sentido, o período republicano, de maior quilometragem de linhas, é claro, foi mais nocivo à administração das ferrovias do que o imperial. O rodízio de governantes implicava em negociar apoio com parlamentares, empresários, políticos, proprietários de terras e outros poderosos, traduzido, muitas vezes, em colocações, transferências ou promoções para os apadrinhados. Mas essas, é óbvio, não eram as únicas moedas de barganha, pois concessões para implantação ou prolongamento de ferrovias ou medidas protecionistas para as estradas de ferro também eram assim obtidas.

O empreguismo que assolou o meio ferroviário, estatal em longos períodos, sempre foi motivo de críticas e de justificativa para o processo de desestatização, efetivado na década de 1990. Sobre esse assunto, tem o que testemunhar esta autora, que na Unidade de Documentação da Regional Belo Horizonte da RFFSA, nos anos de 1999 a 2001, pesquisou a correspondência diária dos Superintendentes Regionais, produzida no período de 1976 a 1985. Parte considerável dessas cartas que são cópias das correspondências enviadas pela Superintendência refere-se às dezenas e dezenas de indeferimentos para solicitações de empregos, a maioria, encaminhada por políticos, sendo que muitos deles tinham tal prática como corriqueira. Como não foi analisado um só documento que confirmasse atendimento ao pedido de emprego, nos vemos diante de duas hipóteses: ou a Regional Belo Horizonte era uma exceção nesse universo estatal, resistindo bravamente às pressões políticas, ou os pedidos atendidos o eram extra-oficialmente, não gerando nenhum tipo de registro que comprometesse as partes envolvidas. Certo é que houve casos em que se tornou público o processo de preenchimento de vagas, como em novembro de 1983, quando, em apenas dois dias, 30 mil pessoas se candidataram aos cargos de artífice mecânico, técnico em eletrônica,técnico em laboratório, desenhista, motorista, auxiliar de serviços gerais, e outros (Estado de Minas, 12 nov. 1983).

Fato é que ocupando cargos de chefia ou burocráticos, principalmente, não faltaram os inadequados para as tarefas que lhe eram exigidas. Relatos da incompetência e do “corpo mole” de muitos ferroviários abundam nos registros históricos e técnicos e são abaixo exemplificados pelo episódio da época da encampação do Ramal de Diamantina, pela Central do Brasil:

No Escritório, encaminhamos no “serviço”, isto é, nas “prerrogativas do ponto” aquelas duas virtuosas crias do honrado Ministro Francisco Sá: o Mourão e o Marcelo.

Encaixados às pressas na “encampação”. Ambos valetudinários; ambos imprestáveis de nascença.

Ambos choutões, náfegos, encambitadores: inadequados à sela; refretários à cangalha. Mas boas, inocentes criaturas; amigos de infância, familiares do Ministro, ao qual se dirigem por cartas diretas, amiúde.

Pomos o Mourão a não fazer nada; a “tomar conta do Pote”. E o Marcelo briosamente responde, quando interpelado, que a sua função própria é de “ajudante do Mourão”!… (FREITAS, 1953: 26).

Espirituosa consideração sobre a incompetência no meio ferroviário foi produzida por um chefe da Estação de Juatuba, da antiga Oeste de Minas, depois Rede Mineira de Viação e, então, Regional Belo Horizonte da RFFSA:

Se tropas e ferrovias revolucionaram a técnica e os trabalhos de transportes, coube-lhes também o papel de promotores de uma revolução econômica, incentivando direta ou indiretamente, muitos setores econômicos. No período colonial, a manufatura do couro, a clandestina do ferro, a da tecelagem mais grosseira e a produção de milho tiveram um grande incremento com as tropas.

A montagem da tropa exigia muitos artigos de couro, diferentes panos e muitas ferraduras e, diariamente, rações de milho eram dadas aos animais. Benévolo nos informa que a substituição

das tropas pela ferrovia provocou uma verdadeira crise de superprodução do cereal, cujo consumo caiu vertiginosamente nos trechos dos antigos caminhos reais que passaram a ser servidos pelos trens (BENÉVOLO, 1953: 66).

Diferentes ofícios surgiram nas Minas para atender às necessidades das tropas, como o de ferrador que colocava ferraduras nos animais e servia-lhes, muitas vezes, de veterinário; o barganhista, que fazia permutas de animais de sela ou de transporte; o “adomador”, que montava pela primeira vez os grandes animais chucros; o “paulista”, amansador de bestas que usava técnicas de adestramento à maneira de São Paulo; o peão, amansador de eqüinos e muares à maneira do norte de Minas; o “amontador”, que montava os animais bravios para “chegá-los no jeito”; e o “acertador” ou picador, que acertava a marcha dos animais (TORRES, 1962: 1120-1121).

Já as ferrovias propiciaram o desenvolvimento da indústria extrativa de madeira para a confecção de dormentes e para a produção da lenha queimada nas caldeiras das locomotivas; da mineração e da siderurgia para a produção de trilhos, pontes e ferragens variadas; da indústria de material rodante - locomotivas, vagões e carros de passageiros; da indústria extrativa de pedras usadas como lastro; da indústria de confecções para atender à necessidade de uniformes para os ferroviários; da indústria de vidro para janelas de carros; e da construção de estações, armazéns e oficinas.

As conseqüências indiretas de tropas e estradas de ferro para a agricultura, a pecuária, o extrativismo, a indústria e o comércio, em geral, são tanto notáveis quanto de difícil mensuração.

Sendo ambas, os meios de transporte por excelência de suas épocas, nada do que se produzia era transportado de outras formas. Muitos produtores tinham suas tropas particulares, mas os menores recorriam aos tropeiros, vendendo-lhes a produção ou encarregando-os de negociá-la em outras regiões. Com as ferrovias, as muitas linhas e desvios particulares que atendiam estabelecimentos industriais apontam para a dimensão da economia fomentada pela ferrovia. A título de exemplo, temos na jovem capital mineira, a inauguração, em 1913, de seu primeiro desvio ferroviário para atender a um empreendimento industrial, uma serraria, a de Garcia de Paiva & Pinto (PENNA, 1997: 138), hoje importante marco cultural da cidade que abriga eventos de naturezas diversas.

Com o comércio não foi diferente. Inicialmente, nos caminhos coloniais havia os pousos que eram meros telheiros sob os quais tropeiros e viajantes acampavam, podendo contar com água para si e para os animais. Os proprietários dos pousos lucravam então com o comércio de milho  para os burros. Passou-se então aos ranchos, acomodações precárias para os viajantes. Mais tarde, vieram as vendas que cumpriam a função de mercearia e de hospedaria, e, posteriormente, as estalagens, com melhor estrutura para acomodação e alimentação dos viajantes. De maneira geral, os primeiros negócios contavam exclusivamente com produtos das fazendas situadas às margens das vias; com o tempo, além da refeição - geralmente à base de carne suína, farinha de milho e de mandioca, feijão, doces locais, rapadura e aguardente -, podia-se, nesses estabelecimentos comerciais, encontrar vela, fumo, tecido, livro de missa e muitas outras mercadorias provenientes de outras regiões.

A relação ferrovia-comércio é igualmente profícua e, novamente, recorremos a exemplo da história da capital mineira. Ao ser inaugurada, Belo Horizonte ligava-se à primitiva Linha doCentro da Central do Brasil, de bitola métrica. Com a construção da Linha do Paraopeba, integralmente inaugurada em 1919, Belo Horizonte se ligou ao Rio de Janeiro diretamente pela bitola larga. Como a antiga Estação de Minas, construída pelo Estado de Minas Gerais, mostrara-se inadequada para o aumento do tráfego então previsto para a capital, tratou-se de demoli-la e de construir uma maior. A atual estação, que hoje abriga o Museu de Artes e Ofícios, foi inaugurada em 1922. A placa comemorativa da solenidade foi oferecida pela Associação Comercial da cidade, como prova de seu reconhecimento pelos inestimáveis serviços prestados pela Central do Brasil ao comércio de Belo Horizonte (PENNA, 1997: 185).

A relação entre o comércio e a estrada de ferro fica evidente nos endereços de estabelecimentos.

Anúncio de casa comercial incluía, obrigatoriamente, a informação da ferrovia que servia a localidade onde ela se situasse. A inclusão da estrada de ferro nos elementos que indicavam a localização de casas comerciais que se promoviam por meio dos jornais e revistas, certamente lhes atribuía ares de cosmopolitismo. No caso de localidades servidas pela Central, principal ferrovia brasileira que as ligava diretamente à capital da república, aberta ao comércio internacional, podiam os estabelecimentos comerciais dispor das novidades e dos melhores produtos que pelos trilhos chegavam para satisfazer às necessidades de consumo dos clientes. Ademais, grande status a menção da ferrovia lhes conferia, pois, sinal evidente da modernidade, ela não somente detinha o poder de inscrever no mapa localidades antes inexistentes ou desconhecidas, como possibilitava glórias maiores àquelas já tradicionais e àquelas agraciadas com as menores quilometragens de suas linhas (CAMPOS, 2002: 73). E havia sempre a possibilidade de, por meio dos entroncamentos ferroviários e dos regimes de tráfego mútuo mantidos pelas empresas ferroviárias, transportar-se qualquer coisa, para qualquer lugar, desde que servido por trilhos.

Com tantos negócios, tropas e ferrovias significaram prosperidade para muitos, principalmente para tropeiros e ferroviários. O ouro das Minas produziu uma nova sociedade, na qual qualquer relação comercial era feita com ouro e, apesar dos preços exorbitantes, a possibilidade de enriquecimento espreitava à porta de muitos. Se a regra foi a miséria e uma vida repleta de carências, muitas histórias pessoais de mineradores, de comerciantes, de funcionários públicos e até de escravos justificam os mitos de opulência e de riqueza das Minas Gerais. Com a circulação dessa riqueza, era nas mãos dos tropeiros que recaíam os frutos do trabalho e da sorte de muitos.

As estradas de ferro estão intimamente relacionadas com a inauguração do capitalismo industrial e financeiro no Brasil. Quando criada, a D. Pedro II era a empresa de maior capital do país; atrás dela, nada menos que o Banco do Brasil.

O quadro abaixo apresenta as seis maiores empresas registradas no Tribunal do Comércio da Capital do Império, de 1850 a 1865 (EL-KAREH, 1980: 58):

A revolução do ponto de vista do capital, também alcançou o trabalho, pois o empreendimento exigia não só uma soma fabulosa de dinheiro, mas também um nível elevado das forças produtivas (EL-KAREH,1980: 59). Nos primeiros tempos, nas ferrovias brasileiras, essa força produtiva era bem remunerada.

Estrangeiros que vinham como técnicos ferroviários percebiam altos salários para a sociedade brasileira da época, então marcada por relações pouco monetarizadas. Para os trabalhadores nacionais, a organização administrativa da ferrovia que estabelecia hierarquias para as diferentes categorias funcionais representava oportunidades de ascensão social. Nesse contexto, a proteção dada ao trabalhador ferroviário merece destaque, pois coube à ferrovia a primeira legislação previdenciária do Brasil. A Lei Eloy Chaves, de 24 de janeiro de 1923, criou, em cada uma das empresas ferroviárias do país, uma Caixa de Aposentadoria e Pensão para os seus empregados.

Inovadora e de caráter includente, a lei considerava empregados com direitos previdenciários tantos os que recebiam salário mensal, quanto os diaristas, de qualquer natureza, que prestavam serviços de caráter permanente.

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