O CONTO DO DIÁRIO

Imprimir


O CONTO DO DIÁRIO


Cálida, saltitante, mais de um milhão de estrelas nos olhos, foi assim que Natália chegou em casa. Disparou para o quarto, trancou-se: os pais não podiam incomodá-la! Pegou o diário e a caneta na gaveta da cômoda, mergulhou na cama e pôs-se a metralhar tinta azul-turquesa, cintilante, nas páginas cor-de-rosa:

“SEGUNDA-FEIRA, 12 DE JUNHO, ‘Dia dos Namorados', tardinha. _ Ai, meu Deus, obrigada!... Que beleza! Que maravilha! Venci mais uma batalha: o Diogo aceitou me dividir com ele!
Pôxa, Diário, mas como foi difícil! Meu namorado não é mole, não. Nem parece que já estamos no século XXI. O Diogo mais parece um daqueles homens que viviam nas cavernas, os trogloditas. Diz que mulher dele só deve ter olhos pra ele, pode? Hoje mesmo, pela manhã, ele me falou isso. Depois, cedeu.
Foi preciso um mês pra convencê-lo, implorando todos os dias. Me tornei mais atenciosa com ele, mais carinhosa, mais obediente... Você bem sabe, Diário. Até trocar as mini-saias pelas calças compridas eu troquei. Menos batom, menos blush, menos sombra, menos riso, menos quase tudo. A mais, só a roupa e o grau de comportamento _ este, impecável. Tolice!... Já estava ficando histérica de tanto esperar pelo sim dele, quando, agora há pouco, na saída do colégio, ousei dizer ao teimoso, com todas as letras:
_ Cansei de ser enrolada por você, Diogo, e eu não sou fio pra isso. Te amo muito, mas... das duas, uma: ou você aceita, pra valer, me dividir com ele... ou a gente rompe o namoro agora, tá legal? Tô falando sério!
_ Eu não posso te dividir com ele! _ me respondeu, impaciente.
_ Você já me dividiu com tantos outros, rapá, qualé agora, hein?
_ Só que os outros de antes não eram ele...
_ Ah, é, mocinho? Então, qual a diferença entre os outros e ele, quer me dizer, por favor?
_ Não gosto dele. Simplesmente não gosto, Natália.
Daí insisti, forçando-o a se sentar comigo em um dos bancos verdes, de ferro:
_ Por quê? Não, eu exijo que você me diga. Você sempre foi tão nem-aí pros outros, ô cara... O que é que tá pegando, hein?
_ Nada. Só sei que mulher minha só é pra ter olhos pra mim!
_ Ciúme bobo, cara. Estamos nos tempos modernos, Terceiro Milênio, lembra? Robôs, Internet, supercelulares...
_ Mas isso tudo aí não me mete medo, não. O que você quer fazer, ficando com aquele outro lá, isso, sim.
Relaxei. Tentando entendê-lo melhor, indaguei, terna:
_ E você tem medo do quê, exatamente, hein, amor?...
_ Te perder, Tatá _ a resposta foi corajosa e lacônica.
_ Me perder?... _ me surpreendi.
_ É. Sempre que você tá com qualquer um outro, eu me sinto... supervazio, sabe? É como se ele tivesse arrancado você de mim pra sempre. Esse novo que você quer aí, então, pra mim, é o pior de todos!”

Contou-lhe que sonhava com ela todos os dias, acomodada nos chifres dele, Diogo, a vista prenhe de cobiça, mordendo os lábios carnudos na intenção do mais novo ficante. O último havia sido há um mês e meio.

“ _ Que absurdo esse teu sonho! _ Era um absurdo mesmo.
_ Absurdo, é? Vai que você se empolga com esse aí, resolve se aventurar mais, aí me esquece, me abandona, né?!
Inacreditável aquele ciúme! De súbito, beijei-o ardentemente pra aplacar seu coração, como nunca o tinha beijado antes, e, depois, aproveitando o seu desarmamento, confessei:
_ Nunquinha que eu vou te deixar, Diogo. Eu te amo! Olha, sou apaixonada por tudo em você: teus olhos, tua boca... teu cheiro, esse teu cabelo hippie... tuas roupas largadonas, tua ideologia não-às-drogas... Até por teu mau-humor, sabe? Sou doidona por você. Completamente insana, mas... também tô loucamente apaixonada por ele, e isso desde que a Silvinha me falou dele, me fez conhecê-lo na casa dela... Ah, quero tanto poder ficar com ele sem ter que abrir mão de você, meu tchutchuco... Será que não dá pra compreender isso?...
_ Não _ respondeu, seco.
_ Não? _ cansei, e fui ríspida: _ Então prefere que eu fique com ele às escondidas? Que eu vá pra cama com ele às escondidas, é?
_ Você não seria capaz _ duvidou, erguendo-se.
_ Sou, e não há quem me impeça! _ contra-ataquei, também me levantando. _ Você não é meu dono, completei 18 ontem, meus pais são liberais...
Baqueado, Diogo se sentou novamente; eu, em seguida, pra acrescentar:
_ Além disso, amor, vivemos hoje numa democracia. Pra tudo!
_ Quase tudo!
_ É, mas vivemos... Vem cá, me diz uma coisa, sinceramente, vai: do que é que você não gosta nele, hein? Já me dividiu com tantos... Do que é?
_ Jura que... não vai rir de mim? _ me perguntou, acanhado.
_ Juro. Do que é?
_ É... é do nome dele... _ e cobriu o rosto, com vergonha.
Ah, o meu amor por Diogo se agigantou naquele momento. Beijando-lhe a orelha ao mesmo tempo em que lhe afagava os cabelos, senti que ele tinha me dado a permissão pra eu ficar com os dois.
Antes de a gente se despedir, Diogo me prometeu trazê-lo pra dormir comigo, ficar comigo. Quando ele promete, cumpre, chova ou faça sol! É como promessa divina. Pois é, Diário, e é justamente isso, esse lado Deus dele o que mais me atrai. Bom, mas chega de papo, que, daqui a pouco, os dois vão estar aí. Tenho que me cuidar. Preciso realçar minha beleza!”

Diário cerrado, devolvido ao lugar de sempre, Natália partiu para o ritual da beleza _ considerava um ritual o ato de se produzir.
Despida, o corpo já semi-imerso nos sais de banho, nas ervas aromáticas, ela brincava com as bolhas. Pose sensualíssima, bastante espuma para soprar. Auto-abraço, um quase adormecer, relaxamento. Prazer. Alegria no cair daquela noite gostosa e curitibana de inverno.
O quarto, na penumbra lilás do abajur (única luz acesa), aquecia-se só de abrigar a ninfeta a secar-se e vestir-se. O minivestido de cetim vermelho, sobre a pele bronzeada, incrivelmente alheia ao friozinho, caiu-lhe como uma luva; o batom Boka Loka, da mesma cor, mais ainda na boca louca. Cabelos longos, úmidos, cheiro de rosas, contemplou-se através do imenso espelho. Belíssima!
Toque de campainha!
_ São eles!... _ vibrou, indo atender sobre saltos altos também vermelhos; o corpo, tão candente quanto o coração, prestes a explodir de êxtase.
Eram eles, sim. Entretanto, nem deixou Diogo abrir a boca, sequer entrar. Apenas o outro. Só o outro. Tudo seria o outro naquela noite. Tirou-lhe a “roupa”, que a impedia de vê-lo como realmente era; levou-o ao quarto e deitou-se em sua companhia. Há muito esperava por isto, para tê--lo no “Dia dos Namorados”. Centenas de abraços, mil beijos... Ia dormir com ele! Nem acreditava.
No dia seguinte, começou a devorá-lo avidamente; o papel de presente, a “roupa” dele, ainda repousava no chão da sala, junto à porta.
Diogo, o ciumento bobo, deixara de fricotes e o havia comprado para ela. “O Garanhão”, o livro dos seus sonhos. Pena Diogo não apreciar a leitura...