Reféns de nós mesmos

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Clara passeava no jardim com as crianças.
O céu era verde sobre o gramado,
A água era dourada sob as pontes,
Outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,
O guarda-civil sorria, passavam bicicletas,
A menina pisou na relva para pegar um pássaro,
O mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era
Tranqüilo em redor de Clara.

As crianças olhavam para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo.
Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor; os insetos.
Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas,
Esperava cartas que custavam a chegar,
Nem sempre podia usar vestido novo.
Mas passeava no jardim, pela manhã!!!

Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!
(ANDRADE, C. D., apud ALVES,J.F. p. 59)


Hoje acordei com o meu mau humor matinal de sempre, tomei meu café, liguei a TV e me deparei com um noticiário, que abordava a questão da violência, diante do fatídico caso de abominação da vida, do garoto João Helio Fernandes Vieites, que foi arrastado por bandidos até a morte, no estado do Rio de Janeiro.
Comecei a pensar em porque estamos nessa vida, tendo que passar por esse tipo de situação? Porque acordar mal humorado tendo uma vida normal, com poucos riscos, dentro da minha casa, com meus familiares, enquanto há pessoas do lado de fora sofrendo tanto, como os pais desse garoto. Foi emocionante ouvir da mãe de que ela só queria o filho dela, o resto não importava. Que levassem o carro, que levassem tudo, mas que deixassem o seu cordão umbilical mais perfeito que Deus pôde lhe dar, que era o seu filho.
Tento imaginar o que se passa na mente e no coração de um indivíduo que tem prazer e coragem de realizar tal tragédia, mas não consigo atingir esse patamar de pensamento. Não consigo imaginar tanta frieza num ato como esse.
Sabe, sofremos tanto por pequenas coisas, sobrevivemos a cada dia, trabalhando, lutando, batalhando para conseguir uma vida mais harmoniosa, mais confortável, e num belo dia um ser humano, se é que podemos chamá-los assim, se aproxima, nos aponta uma arma e arranca-nos o que demoramos tanto para conquistar. E mais que isso, nos arranca a coisa mais importante que Deus pode nos oferecer que é o outro, o filho. Será que é difícil se colocar no lugar do outro? Será que não existe dentro desses indivíduos uma pontinha de sentimento de que aquilo que ele faz ou fez com o seu próximo poderia estar acontecendo com ele ou com algum parente próximo dele?
Vivemos a tanto tempo escravizados por uma elite, aceitando os seus desejos e anseios, será que agora teremos que viver mais algum tempo escravizados por nós mesmos? Até quando?
Em pensar que fomos criados a imagem e semelhança de um SER divino, nos dando a oportunidade de aproveitar tudo que existe neste planeta. Deus nos criou à sua imagem e nós, o que fizemos? Deturpamos toda magia e divindade desse ato de amor.
Fico intrigado repensando os motivos que levariam a uma pessoa agir dessa forma, sem pensar no sofrimento do outro, sem pensar na vida do outro que prossegue, sem pensar na sua própria vida. E tudo isso por quê? Para quê? Se todos num belo dia partiremos.
Poderíamos arranjar todas as desculpas possíveis e impossíveis para esse ato de crueldade. Dificuldades financeiras, crise existencial e familiar, necessidade de TER, mais do que SER, o sentimento de poder sobre a vida do outro, mas tudo isso é injustificável diante de todo sofrimento causado por tal atitude. Não existe na face da terra algo que justifique a necessidade de se agir dessa forma.
E ainda temos que agüentar os nossos governantes preocupados em decidir o valor do seu próximo salário. Assistir uns se debatendo com os outros por uma ideologia política que só beneficiará a eles próprios, e que não tem nenhum vínculo com o seu patrão que é o povo.  Governantes preocupados com a decoração de seu gabinete, com os rumos de sua carreira política, com a sua segurança, enquanto o povo que paga seus impostos para sustentar esse país sofre diariamente com a violência e a sobrevivência. Porque será que apesar de tantos impostos, de tanta riqueza, num país tão diversificado culturalmente, economicamente e politicamente ainda tenhamos o maior índice de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza?
Esses casos proporcionam uma indagação sobre a quem pode interessar esses acontecimentos e a dificuldade de se punir os grandes mentores dessas crueldades, sou enfático em afirmar que isso só pode interessar a quem nunca teve seu filho arrastado por num carro, em alta velocidade, e enquanto pai, ver aquela cena sem poder fazer nada. Interessa para todos que vivem na sua redoma de segurança e não precisam levantar todos os dias às cinco horas da manhã para tomar um ônibus e correr os riscos que todos sabemos bem quais são.
O que não podemos permitir é que esses acontecimentos caiam na banalização, ou seja, na rotina, cotidiano. Um ato que causa um sentimento de revolta momentâneo e depois se esvai esquecido por todos.
Precisamos sim de mobilizar-nos porque somos maiores. É inadmissível que tantos seres humanos fiquem reféns de um ou dois bandidos, e que esses possam dirigir as nossas vidas de tal forma que fiquemos aprisionados em nossos lares sem termos como aproveitar a vida que o nosso semelhante nos ofereceu. Precisamos agir, precisamos de iniciativa, de sair da nossa vidinha e lutar pelo que é nosso tanto quanto é deles, a LIBERDADE.
Que Deus nos abençoe!

REFERÊNCIAS
ALVES, Júlia Falivene Alves, Cidades maravilhosas, cheias de violências mil. apud Violência em debate, ed. Moderna, p. 59, 1994.