O Colecionador

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Era um daqueles dias de cão. O departamento estava em festa porque finalmente tinham me contratado para atuar como detetive. As meninas estavam em polvorosa. Eu nem sei por que exerço tanto fascínio sobre a mulherada. Só faltavam me lamber!

Todos os dias eu tinha que fazer escolhas, mas aquele dia foi de amargar. Ninguém sabia de minha coleção secreta. Comecei ainda jovem, mas naquela altura de minha conturbada vida de detetive, aquele hobby estava trazendo-me problemas. Sobrava-me praticamente só à noite para organizá-los e guardá-los para que jamais alguém os descobrisse; enterrava-os no porão: era um lugar escuro e sem chance de alguém descer ali.

Só uma vez, entrou um menino para fazer o que os meninos costumam fazer nos porões, mas quando viu meus olhos brilhando no meio àquela montanha de lascas brancas, petrificou-se e gritou.

Você já ouviu alguém gritar aterrorizado? Não? Pois eu, sim. Não se ouve nada! O moleque teve de ser resgatado pela mãe.

Um dia o departamento começou a desconfiar do sumiço deles - dos ossos -. Eu sempre fui discretíssimo quando surrupiava um ou outro. Fazia isso, geralmente na calada da noite, quando a maioria do pessoal estava em diligência.

Numa de minhas missões como detetive, fui parar num galpão enorme e vi a coisa mais incrível da minha vida. Era o maior osso que eu já tinha visto até então. Tinha duas enormes bolas nas extremidades, numa barra de uns 70 centímetros e, pendurado nele, uma etiqueta que dizia ser do Museu de Paleontologia do Estado. Fiquei hipnotizado por aquela peça.

Não foi fácil levá-lo para o porão. Tive que burlar todo o departamento, fingir que estava em uma investigação e no meio do caminho, pular pela janela traseira do carro de meu companheiro de missões e fugir. Fui direto para o porão e escondi aquele troféu para a minha coleção.

Nesse meio tempo começou uma investigação fantástica que envolveu todo departamento. Tinham aberto até um inquérito para apurar o desaparecimento do osso de dinossauro. Estava se tornando um caso sem solução até que resolveram colocar-me como isca para pegar o suspeito.

Naquela noite eu não sabia, mas seria a peça chave para o desvendar do mistério.

Como eu estava deslumbrado com o meu troféu maravilhoso, sorrateiramente voltei para o porão da coleção secreta.

Não vi quando pularam pela janelinha-alçapão.

Quando dei por mim, acenderam lanternas de todos os lados: ali estavam todos os investigadores do departamento.

Eles olhavam-me com os olhos arregalados. De repente vieram pra cima de mim, rindo, abraçando-me e afagaram-me dizendo:

-Rex, você é o melhor cão detetive do departamento de homicídios. Descobriu sozinho o esconderijo do colecionador de ossos. Parabéns!

 

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Em Torno

Escrevo seu poema
E de repente
Estou escorrendo do papel.
Acabo de morrer.
Fico pairando no ar
Querendo precipitar-me
Para dentro de mim mesma.

Aquelas raízes
Que me prendiam ao chão,
Soltaram-se.
Meu coração se foi,
Prendi-me neste licor de limbo
E aqui estou.

O som é-me inexistente,
Mas sinto o gosto do barulho.
Morri numa letra atroz de seu poema
E acordei fora de mim.
Agora pairo no ar ofegante por ele.
Concentro-me na linha escura
Da letra rompida.

As palavras do poema embaralham-se
Tentando dizer-me algo.
Espanto-me com esse redemoinho de letras.
Vou entrando pelas dobras das coisas,
Escôo-me inteira dentro do papel.
Nada mais me importa.
Escorrego-me entre as linhas paralelas
E oxido-me vermelho sangue.

 Espiral

Fui sacudida em mar aberto,
Navegada em carne tremula.
Afundei nos vãos de seu corpo
De pirata navegante.
Deslizamos em ramificações de gotas
E fui alongada, até extinguir-me em ti.
Giramos num espiral de êxtase,
Pulsando num frenesi cardíaco.

Sua cor espessa
Deslizava em minha carne branca,
Desenhando tatuagens tribais selvagens.
Descobri uma fome desconhecida
E não quero ser aplacada dela.

Reconheço sua flor da pele
Resvalando meus sentidos.
Sua cor que nega a minha,
Desperta passagens de lume,
Esquadrinho-me em sua simetria
E sou reduzida a um rabisco desordenado,
A uma linha retorcida
Que brinca em seus dedos
De capitão navegador.

 Essência

Hoje quando abri a janela,
Fui convocada sutilmente a olhar.
Ele circulava pelo ar, por toda parte.

Invisível era esse chamado,
Trazia aos meus olhos,
Uma essência mágica.

Atravessava-me antecipando
Uma alegria despertada
A golpe de urgência.

Debatia-se na vidraça de meus olhos.
Mantinha-se pulsando,
No mesmo compasso vivo,
Deixando-me fisgada e sem fôlego.

Tinha que lhe dar um nome,
Mas que nome daria ao
Esplendor da vida!

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 Irremediável

Foi tanta ânsia louca
De te ter dentro de mim,
Que me fiz desatar
Dessa vontade enfim.
Articulei uma lógica
Insensata e cega
De precipitar-me
Atravessando-me em ti.
Decifrei poros,
Descobri músculos,
Penetrei mistérios
Até dobrar-me
Neste frenesi.
Despertei teu rastro
Encontrando algo que
Cintila um astro
Encaixando em mim.
Arrastamo-nos um ao outro
Com a avidez de um louco
Dilatamo-nos,
Eu em ti,
Tu em mim.
E irremediavelmente
Como água limpa,
Derramo-me
Neste corpo urgente
Que sedento sela
Sua vontade em mim.