Finalmente encontrei disponibilizado no Youtube (em versão legendada que os leitores podem acessar clicando aqui) um filme representativo do magnífico cinema policial francês das décadas de 1960 e 1970: Adeus, amigo, de 1968. Com isto, tenho pretexto para fazer uma pequena digressão sobre o filão. 

Era um tempo em que os estadunidenses insistiam em introjetar nos espectadores, martelando-a ad nauseam, sua visão maniqueísta de mundo, de forma que quase todos os seus policiais (e também os westerns) tomavam o partido das forças da ordem e apresentavam os bandidos sob ótica extremamente negativa. 

A demonização dos gangsters ia a tais extremos que, na fita famosa de 1932, dirigida por Howard Hawks, há uma clara sugestão de que Scarface seria incestuoso. Para que os tiras parecessem sãos, confiáveis e protetores, os marginais eram apresentados como monstruosidades.

Produto de uma sociedade muito mais evoluída, o cinema francês não estava comprometido com lavagens cerebrais conservadoras e policialescas. Grandes novelistas como George Simenon e Auguste Le Breton fixaram um parâmetro para o gênero: enfocar o submundo e a polícia como dois universos complementares, cujas regras e valores eram expostas de forma isenta, sem preconceitos rançosos.

O comissário Maigret, personagem de Simenon, não está a serviço de uma Justiça infalível nem obedece cegamente à lei. Sempre que há um conflito entre o que é certo e o que acabará ocorrendo face às imperfeições da Justiça e da lei, ele opta por seguir seu próprio juízo. 

O grande Jean Gabin no papel do Comissário Maigret

Até cometendo pequenas ilegalidades, age e tange os acontecimentos para que haja Justiça no sentido maior da palavra, seja poupando coitadezas que não sabiam o que estavam fazendo ou merecedores de uma nova chance, seja castigando poderosos que normalmente ficariam impunes. Expressa uma um descompromisso e uma desconfiança bem européia em relação ao Estado.

Quanto a Le Breton, seu clássico Rififi mostrou o submundo (o chamado milieu) de forma até simpática: quando um gângster sequestra uma criança para pressionar os comparsas a entregarem-lhe todo o butim, a reação da marginalidade é unânime e indignada, tomando as dores do pai aflito. Não são monstros, têm sua moral e seus códigos, incluindo uma solidariedade básica para com os outros marginais. 

[Isto é algo difícil de compreender para os jovens de hoje, pois os criminosos, principalmente a partir dos lucros mirabolantes do tráfico de drogas, tornaram-se bestas-feras, além de manterem laços promíscuos com a polícia e delatarem uns aos outros com a maior sem-cerimônia. Mas, nem sempre foi assim.]

Robert Ryan contracenou com Jean-Louis Trintignant

Se Simenon e Le Breton foram determinantes para a postura arejada dos policiais franceses da primeira metade do século passado, cujo principal astro era Jean Gabin, adiante vieram juntar-se-lhes Sebastien Japrisot e, principalmente, Jose Giovanni (autor de novelas policiais que também atuava como roteirista -adaptando tanto seus textos como os de outros escritores, daí ter colaborado com duas dezenas de filmes- e diretor).

E David Goodis, cuja obra é muito mais afim dos policiais franceses que dos estadunidenses, teve suas novelas aproveitadas em cinco filmes, dentre eles o primoroso O homem que surgiu de repente.

Um divisor de águas foi O samurai (1967), do grande cineasta Jean-Pierre Melville, veterano da Resistência Francesa. Equiparando um matador de aluguel francês aos ronins japoneses, o filme disseca exaustivamente a técnica e os valores desse indivíduo que obedece a um código de conduta extremamente rígido: é o profissional perfeito, só que atuando numa profissão diferente. Com sua parcimônia de diálogos e sua abordagem desglamourizada, influenciou fortemente os cineastas franceses daquela geração, praticamente definindo o modo francês de fazer policiais dali em diante.

Antes de ser cineasta, Melville resistiu à ocupação nazista

Melville é responsável por outros filmes fundamentais, como Bob le Flambeur (1956), Técnica de um delator (1962), Os profissionais do crime (1966), O círculo vermelho (1970) e Expresso para Bordeaux (1972). 

Entre os principais diretores do filão, destacam-se também: 

  • o próprio Giovanni (Último domicílio conhecido, 1970; Scomoune, o tirano, 1972: Dois homens contra uma cidade, 1973; O cigano solitário, 1975; e Bumerangue, 1976);
  • Henri Verneil (Gangsters de casaca, 1963; Os sicilianos, 1969; Os ladrões, 1971; e Medo sobre a cidade, 1975):
  • Jacques Deray (Borsalino, 1970; Os gangsters não esquecem, 1972; e Flic story, 1975);
  • Rene Clement (O sol por testemunha, 1960; O passageiro da chuva, 1970; e O homem que surgiu de repente, 1972); 
  • Robert Enrico (Ho! A face de um criminoso, 1968; Um beijo ao morrer, 1972; e O segredo, 1974); e
  • Yves Boisset (O assassino tem as horas contadas, 1968; O chefão, 1970; e O cobra, 1971). 

Delon e Belmondo, juntos em Borsalino

Os astros do filão, claro, eram Alain Delon e Jean-Paul Belmondo, mas muita gente boa andou por lá: Jean-Louis Trintignant, Maurice Ronet, Robert Hossein, Yves Montand, Simone Signoret, Lino Ventura, Gian-Maria Volonté, Serge Reggiani, Michel Bouquet, Bernard Fresson, o eterno Jean Gabin, etc. Até Robert Ryan e Omar Shariff deram o ar de suas graças.

Adeus, amigo tem direção correta de Jean Herman, valendo, sobretudo, pela excelente história de Sebastien Japrisot e pela atuação marcante de Alain Delon e Charles Bronson, ambos na melhor fase de suas carreiras. 

Uma série de equívocos acaba fazendo com que ambos fiquem presos num enorme cofre, durante o feriadão de Natal: Dino (Delon), porque queria fazer um favor à amante de um saudoso amigo; e Franz (Bronson) por pensar que se tratava de um roubo, do qual tentou também participar. 

Ao finalmente saírem, Dino pede a Franz que lhe dê sua palavra de honra, de jamais revelar que estiveram juntos no cofre, evitando assim um enquadramento jurídico que aumentaria muito uma eventual pena de prisão. Franz responde: "Mas, eu não tenho honra". E Dino: "Prometa-me, mesmo assim".

A insólita amizade entre pessoas tão diferentes vai lhes acarretar muitos tormentos. Mas, acabará mesmo havendo honra entre ladrões (um título alternativo do filme, por sinal mais adequado). Recomendo enfaticamente.

   * jornalista e escritor, foi crítico de cinema na década de 1980 sob o pseudônimo de André Mauro. http://naufrago-da-utopia.blogspot.com

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