Do Maracanã original, sobrou uma casca. Reduzido a um terço de sua capacidade original, está sendo privatizado. Com polpudos recursos do BNDES e da Caixa Econômica Federal, o velho Maraca está sendo reformado pela terceira vez em pouco mais de dez anos e vai ser explorado por empresas privadas.

"E agora já não sou/O que passou, passou".
(“Recado”, Paulinho da Viola)

Tudo andou conforme o figurino. O campeonato carioca de futebol de 1962 ia se decidir no domingo e os times faziam as movimentações de praxe. O Botafogo, seguindo velha tradição, foi receber a benção dos frades capuchinhos, os mesmos que tinham dado uma forcinha em 1957. Ganharam medalhinhas para dar boa sorte. Detalhe importante: os dois craques do time, Garrincha e Nilton Santos, não foram. Fazia parte da superstição: em 1957, faltaram ao ritual. No Flamengo, que jogava pelo empate, o técnico Flávio Costa fazia treinos secretos e imaginava formas de tentar o impossível: anular Garrincha. No final, fez a besteira de deslocar Gerson (ele mesmo, o Canhotinha) para cobrir a lateral-esquerda. Deixou o time torto e sem criatividade.

O Menino ligou o rádio. Os repórteres falavam de mais de 150 mil torcedores no velho Maraca. Em dez minutos, prenúncio de apoteose e tragédia. Garrincha fazia o que muitos consideram uma de suas partidas mais gloriosas. Demoliu a defesa rubro-negra, como quem brincava com seu mainá, e abriu o placar. O novo calvário de Flávio Costa, técnico da seleção brasileira no Maracanazo, começava ali. Foi um baile do Mané, que era solista e maestro ao mesmo tempo. Mal sabia que, logo em seguida, travessura do destino, viria a decadência acelerada. Abatido pelo álcool e pela ganância dos cartolas, que o drogaram seguidamente e o transformaram gradualmente numa sombra melancólica.

Fim de jogo, justa goleada de três a zero. O Menino desliga o rádio e suspira. Mal desconfiava que acabara de ouvir um concerto de gala. Naquela época, só lhe interessavam as cores, e as vitoriosas não eram as suas. Meio século depois, olhos cansados mas curiosos, reviu fragmentos daquela tarde remota nas imagens saudosas do Canal 100. E o que viu nada tinha de trágico. A comemoração de Garrincha depois do primeiro gol é uma aula instantânea de uma época. O que fez o Mané ? Chupou o polegar como um idiota ? Mandou beijinhos para a mamãe ? Dançou coreografias marqueteiras ? Vejam no filmete.

Ali está o peladeiro em estado bruto, rodopiando, extravasando uma alegria que se esgota na grande brincadeira de empurrar uma esfera de couro para toscas redes. Uma alegria espontânea, do bailarino de pés descalços, do caçador de passarinhos. Ah, também não copiou gestos de fé (hoje, tão mercantilizados), levantando dedinhos para o céu. Cada vez que vejo essas simulações malandras de religiosidade, me lembro de um grupo uruguaio de murgas. Manifestação carnavalesca de grande aceitação popular, a murga satiriza tudo, sem qualquer preocupação com o “politicamente correto”. A Contramano é uma das minhas favoritas. Numa de suas sátiras mais ácidas, detonam: se Deus é onipresente, por que as pessoas, ao se dirigirem a ele, olham ou apontam para o Céu ? Ele não está em todos os lugares ?

O Menino viu mais. Era possível estar num estádio de futebol com quase duzentas mil pessoas e não se sentir ameaçado. Inacreditável para as novas gerações, que só conheceram o Maracanã castrado. Não existiam torcidas organizadas. A identidade com o time não precisava de protocolos, uniformes, privilégios ou estatutos. Lembrou as incontáveis vezes em que foi a pé e sozinho ao Maracanã, sempre na arquibancada de cimento e, não raro, espremido entre braços e pernas alheias. Havia alguma tensão no ar, claro, rivalidade não nasceu hoje. Entretanto, quase nunca derivava para agressão física. Contentavamo-nos em zoar o outro lado da arquibancada. O Outro era o adversário a ser ridicularizado, não o inimigo a ser executado.

As torcidas organizadas são a antessala do crime. Hooliganismo que se manifesta em emboscadas, operações de massacre e arrastões violentíssimos. Recentemente, a torcida do Corinthians foi despedir-se de seu time, que embarcava para o Japão. O que era para ser uma ocasião festiva, degenerou em quebra-quebra e pancadaria. Está longe de ser um fato isolado. A ESPN transmitiu recentemente um documentário sobre as torcidas organizadas dos dois principais times de futebol em Moscou. O que o Menino assistiu preferia esquecer. São milicianos fantasiados de torcedores, ansiosos por uma briga. Têm estrutura militarizada, treinam artes marciais e se orgulham de seus “feitos”. Na insígnia de uma delas, aparece o slogan dos gladiadores romanos: Vencer ou Morrer ! O Mané de Pau Grande não sobreviveria em nossa época.

Do Maracanã original, sobrou uma casca. Reduzido a um terço de sua capacidade original, está sendo privatizado. Na esteira de um ufanismo patético, em nada diferente do que assistíamos, horrorizados, durante a ditadura militar, vamos sediar uma Copa do Mundo. Governos federal, estadual e municipal estão liquidando um imenso patrimônio material e imaterial do Rio. Com polpudos recursos do BNDES e da Caixa Econômica Federal, o velho Maraca está sendo reformado pela terceira vez em pouco mais de dez anos e vai ser explorado por empresas privadas. Jeitinho brasileiro: privatização do lucro, socialização do prejuízo. Como bem acentuou o deputado Marcelo Freixo, “a elitização do Maracanã caminha com a elitização da cidade”. Governada, nunca é demais lembrar, por uma coalizão que tem participação direta e aval entusiasmado de Brasília. A estrutura de classes subirá, mais uma vez, a rampa do ex-maior do mundo e dela expulsará o povão, sem condições de pagar o valor dos ingressos que serão cobrados.

Sem alternativas, o Menino guarda o rádio num armário velho. Foi juntar-se a memórias e à poeira do tempo. O Maracanã é apenas um espectro suave, recheado de sons e tardes amenas, de esperança, solidão, glória e drama.
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