A cidade de Porto Alegre foi mobilizada neste mês de maio com a realização do XXI Congresso Brasileiro de Psicanálise. Foram centenas de psicanalistas de várias regiões do País debatendo questões técnicas, clínicas e de alcance geral à sociedade. Selecionei a apresentação proferida pela Dra. Tânia Feital , membro efetivo da Associação Psicanalítica do Estado do Rio de Janeiro , não só pela qualidade do trabalho, mas também por abordar um tema que convive no dia-a-dia de todos nós.

Este trabalho, apresentado aqui na íntegra, por autorização da autora, trata acerca dos movimentos que vão sendo assumidos na sociedade de consumo e que remetem ao fechamento das relações, empobrecendo a criatividade proporcionada pelo jogo das relações pessoais e perpetuando aquilo que denominamos por cultura do vazio.

O ser humano passou, assim, a sofrer a perda do sentido, aprisionado no excesso de significantes que se deslocam numa verdadeira chuva meteórica. O homem-máquina que, desde os anos 60, vem ocupando o imaginário social e nos lançando em verdadeiras armadilhas – aí estão os grupos artificiais formando-se em diferentes partes do mundo como os terroristas da Al-Qaeda, o exército da libertação de Bush, etc. - para que os senhores das guerras possam se ocupar.

Flavio Thamsten

Utilização e Transformações do Corpo na atualidade

Tânia Feital

- E o que você me conta de novo sobre seu corpo?

- Nada! Não quero mais desse corpo que não presta, que se estraga, que fica doente, que atrapalha meu pensamento e dificulta a minha própria razão... Não sou mais um corpo! Cogito ergo sum: Sou um puro espírito, um ser inteligente. Adeus corpo!

Rilke

Abordagem clínica do vazio na utilização e transformações do corpo na atualidade


“Há muito tempo o homem produziu para si um ideal da onipotência e da onisciência, e encarnava-o em seus deuses......Agora que se aproximou consideravelmente deste ideal, ele próprio se tornou praticamente um deus. Só que na verdade, da maneira como os humanos sabem geralmente atingir seus ideais de perfeição, isto é, incompletamente, em certos pontos, absolutamente não os atingiu, em outros, só pela metade. Por assim dizer, o homem se tornou uma espécie de deus profético, deus decerto admirável quando reveste seus órgãos auxiliares, mas estes não cresceram como ele e muitas vezes o cansam bastante”. ( Freud: Mal estar na Civilização ).

A subjetividade se constrói na intersubjetividade. Esse é o legado de Freud . Em 1923, em “O Ego e o Id”, Freud se refere à servidão do Eu às outras instâncias. É nosso desafio desenvolver teoricamente a servidão ao mundo exterior, à cultura. Tanto a formação do superego quanto o processo de identificação revelam que o objeto externo, representante da cultura, é estruturante. Surge um novo paradoxo, a escola de relações objetais de Melane Klein , acusada de negligenciar a função do objeto externo real. Bion (1962), com o conceito de reveriê , coloca em destaque a função materna e paterna. A significação é obra da função materna, que se revela ao interpretar a criatura humana marcada pelo célebre desamparo freudiano . Esse conceito revela a impotência do lactante que, não podendo saciar a exigência de satisfação da pulsão, conclama ao objeto, o outro.

Quando o objeto falha, no segundo tempo, surge o sentimento de desvalimento, falta de socorro. O pré – consciente, sede da representação de palavra que inclui a representação da coisa, coagula tanto ao apelo quanto à obra do psiquismo do outro. É a interpretação materna que gesta a representação de palavra. Winnicott surge para ressaltar a importância do objeto externo real. Para Lacan , que parte do estruturalismo de Saussure, a cultura ganha, na teoria psicanalítica, estatuto epistemológico, assim como a linguagem. O outro é responsável pela alienação do desejo humano. Na reformulação da situação edípica, a criança é o falo da mãe na relação dual, imaginária, especular, simbiótica, narcísica. O nome do pai, portador da lei, separa a necessária simbiose inicial, O pai é o outro da mãe na triangulação edípica. A criança nasce numa cultura. No berço mental dos progenitores, metaforicamente vibra a cultura, os mitos familiares e institucionais, os valores, os ideais, as histórias transgeracionais, as missões a cumprir, os projetos identificatórios, as proibições que , com a violência da interpretação, esculpem o ser. A cultura que estrutura o sujeito, e é o co-responsável pelas novas patologias, desafia a Psicanálise para que, permanecendo o método, seja mudada a técnica de enfrentá-las.

A cultura do vazio

Colocando um corpo moderno em perspectiva, num discurso cientifico contemporâneo, o corpo é tomado como simples suporte da pessoa, algo que pode e deve ser aprimorado, uma matéria prima na qual se dilui a identidade pessoal. O corpo passa a ser um acessório, para não naufragar num sistema cada vez mais ativo e exigente, as pessoas entregam-se a uma manipulação de si a base de próteses. A tecnociência vem socorrer esse corpo que deve ser reparado, rearranjado, assistência médica à procriação, exames terríveis que acompanham a existência pré-natal, enfim, instaura-se a suspeita do corpo e a medicina fazendo a triagem, torna-se um bio-poder.

Enquanto alguns biólogos sonham em livrar a mulher da gestação, a sexualidade cibernética realiza o imaginário do desaparecimento do corpo e até do outro.

Assim, para alguns, o corpo não está mais à altura das capacidades exigidas na era da informação, convém moldá-lo, forjando um corpo biônico no qual seria enxertado um chip que contivesse a alma.

Em Blade Runner , um replicante ( um andróide feito para trabalhar nas minas ) à procura do seu criador

A ficção científica sempre esteve muito interessada nas conseqüências que as novas tecnologias poderiam ter sobre o corpo; do cinema à literatura, muitos foram os romancistas que entenderam que, no "futuro", o homem iria querer mudar sua condição corporal e que a noção de corpo se constitui como uma grande musa da imaginação futurista.

Nos filmes de Blade Runner a Matrix , o uso do corpo humano como um material biológico disponível coloca sempre em cena personagens cuja evidência "humana" é rompida surgindo o medo. Em Matrix , a carne é considerada como uma doença, a condição corporal vista como epidemia e os corpos humanos são fabricados e controlados industrialmente pelos próprios robôs, que inverteram os papéis e demonstraram a superioridade dos materiais eletrônicos sobre as matérias vivas, da eternidade sobre a morte.

Esse poder de "dar a vida", que têm os robôs no filme, parece muito com os poderes que querem adquirir os geneticistas e os engenheiros da Inteligência Artificial do final do século XX. As criaturas moldadas por Moreau na sua ilha de experimentação genética eram híbridas (A Ilha do Dr. Moreau, de H.G. Wells ).

Hoje, a clonagem de animais (e a ciência de reprodução do "idêntico" ultrapassa tecnologicamente a das misturas) já foi realizada várias vezes (o primeiro caso foi de uma ovelha e do seu clone Dolly).

Através da literatura de ficção científica contemporânea que coloca em evidência a velocidade das transformações nas representações e nos usos sociais e medicinais do corpo humano. Tradicionalmente inspirada pelas últimas descobertas científicas e as suas possíveis perspectivas futuras, a ficção científica de hoje está sendo, paradoxalmente, cada vez mais "realista".

A aceleração das descobertas nas biociências e os avanços tecnológicos produzem um "efeito de real" que ultrapassa muitas vezes o próprio desafio "futurístico" da ficção científica: descrever um futuro radicalmente diferente do presente, uma ficção do tempo no mundo.

A Ilha do Dr. Moreau

As tentativas do indivíduo, nas nossas sociedades ocidentais, de dominar seu corpo, suas emoções, seu eu corporal, como ouvimos nos nossos consultórios relatos que passam por um profundo desprezo do corpo. A desconfiança com o corpo concerne a sua aparência, sua exterioridade e visibilidade. Assim que o corpo chega, a sociedade toma conta dele , o corpo é concebido e vivido como se fosse um objeto inacabado, incompleto, um puro rascunho da identidade pessoal. Em busca de um corpo ideal os indivíduos procuram incorporar as normas de uma nova estética corporal.

Muitas pessoas procuram mudar seu corpo através de uma hipermalhação para transformar a imagem e assim, sua vida social. Nessas práticas de modificação da aparência, o corpo é vivido como um parceiro e não se apresenta mais como dado, dando início a processos psicológicos e sociais, mas como produto desses processos. Nessa linha de pensamento, eu posso citar e analisar também as marcas corporais (tatuagens, piercing...) como marcas de uma mudança radical em relação ao corpo . No vasto campo do body art, eu pensei nos trabalhos do Musafar , líder dos "Primitivos modernos" que experimenta no seu próprio corpo várias modificações corporais inspiradas pelas culturas primitivas. Considerando também o transsexualismo como uma marca corporal, pois "a marca corporal traduz a necessidade de completar, por iniciativa pessoal, um corpo que não chega a incorporar/encarnar a identidade pessoal " .

Nessas práticas de individualização, que levam a uma recriação de si, o corpo se torna uma extensão da identidade, como se fosse a parte visível do "ego". Eu associei essas práticas de "correção" do corpo com a medicalização da vida cotidiana e com a produção farmacológica . Por um lado, o corpo visível é reconstruído, por outro, as emoções e sensações são controladas através do uso cotidiano dos psicotrópicos. Do dentro ao fora, do visível ao sensível, essa desconfiança com o corpo leva os indivíduos a usar pílulas e medicamentos para tudo: para acordar, para dormir, para estar em forma, para combater o estresse, a apatia, para engordar, para emagrecer, para bronzear...

O corpo humano virou um continente explorado pelos cientistas em busca de benefícios. No tempo dos anatomistas, os pesquisadores somente procuravam nomear cada fragmento do corpo, hoje eles tomam posse dele para melhor gerenciar os seus usos econômicos potenciais.

A colonização não é mais espacial, ela investe na corporeidade humana. Através de uma leitura crítica dos avanços em genética humana e reprodução artificial, pretendo mostrar em quais pontos o homem procura dominar a sua incorporação ao mundo: a fecundação in vitro , os controles de " fabricação ", os testes do embrião, a idéia de uma infanticida na medicina, a utopia de uma gravidez masculina, estes são os signos de uma forma de eugenismo pós-moderno.

O Projeto Genoma que tenta cartografar a estrutura do DNA humano, considerando que o nosso destino é inscrito nos nossos genes, e as experiências com a clonagem que aparecem como uma tentativa de avaliar as razões genéticas das coisas "humanas": de explicar tudo pelo genético.

Assim, hoje, certos cientistas americanos, pensam "seriamente" que a violência pode ser de origem genética, como seriam também o homossexualismo, o alcoolismo... E isso, "do mesmo jeito que, na época da escravidão, teriam descoberto a existência de um gene do escravo !" As questões de Bioética, levantadas por essas novas ciências, aparecem aqui como novas perturbações introduzidas na configuração do corpo e na configuração do mundo.

Da mesma forma, "o virtual marca o começo de um novo paradigma da relação do homem com o mundo" . Ciberespaço, cibersexualidade, inteligência artificial, mito do Andróide sensível e inteligente...

O Cibersexo

Me as half man/half machine.

O corpo da realidade virtual aparece desencarnado e a carne vira uma pura ficção. O ciberespaço parece poder livrar finalmente o homem da "escravidão do corpo" . A noção de "carne-no-mundo" " e toda a fenomenologia do corpo não tocam mais ninguém, a relação com o mundo está sendo radicalmente transformada numa troca de informações, na qual os homens sonham ser "eletrônicos".

O vazio mental

O conceito de vazio mental vai nos permitir abordar as variadas formas em que este vazio pode aparecer na clinica nas patologias narcisistas : neo-sexualidades, drogadiçao, enclaves autísticos, bulimia, anorexia, doenças psicossomáticas, perversões. Cada quadro na sua especificidade, revela a tentativa de preencher este vazio que cada vez mais se gera e se aprofunda quando faltam experiências reais, genuínas e autenticas.

O vazio mental é uma grave alteração estrutural da mente. Um continente que não pode albergar conteúdos, uma alteração da relação continente-conteúdo.

Os pacientes com vazio mental passam da angústia ( Freud 1926) ao “terror sem nome”. Para Bion , a angustia e o pânico podem ser experimentados pelo ser humano antes da vivência extra-uterina.

A frustração é o ponto de partida que exige trabalho de elaboração do aparelho psíquico. A frustração é a não realização da pré concepção, é a espera, a expectativa de encontro com o objeto do desejo. A privação é a falta do necessário a vida, para vir a ser. É falta daquilo que nunca se teve.

A ruptura precoce da necessária simbiose funcional primária, no início da relação mãe-bebe-pai, provoca um terror sem nome. Vida afora, a compulsão à repetição ( Freud ) procura, com desespero, um renascimento psíquico, a relação simbiótica outrora impossível. As defesas simbióticas erguem-se para anular a dor psíquica pela inexistência do bom objeto e do bom encontro. O objeto desejado esperado, o objeto da pré-concepção é substituído. Não há possibilidade de realização de um trabalho do luto, há uma substituição alucinada, um preenchimento.

A solução para o desamparo não são os investimentos do objeto presente, nem os recursos auto-eróticos do corpo como substitutos do vazio. A única saída verdadeira é restaurar a capacidade do psiquismo para figurar, para investir na representação do objeto. Há regiões sincréticas da mente que apelam para a fusão e efetuam vínculos simbióticos indiscriminados, vida afora, na tentativa de compensar o terror e paralisar o tempo. A presença de um vínculo simbiótico é testemunho de situações para preencher este buraco existencial com o corpo dos parceiros sensuais indiscriminados, longe de serem parceiros sexuais. A simbiose secundária é uma defesa ante o vazio e o terror, ele perpetua os vínculos eternamente sincréticos.

Para Bion , o vazio mental se entende através da identificação projetiva massiva. Quando a paciente tenta pensar, produz-se um esvaziamento mental ao expulsar os elementos BETA, que não geram sentido. Com estes elementos evacuados, vão junto à emoção a ser eliminada, o registro desta emoção, funções mentais e, portanto, a capacidade para pensar. A eliminação progressiva destes elementos gera o empobrecimento mental e, com estes pacientes, somos testemunhas na relação transferencial. A violência da identificação projetiva massiva pode evacuar seus componentes num espaço exterior, criando o objeto bizarro no lugar da ausência, objeto que não é gerador nem de vida, nem de sentido. O objeto bizarro condensa as qualidades originais do objeto e lhe soma múltiplas funções provenientes da parte psicótica da personalidade. Ocupa o lugar que deveria ocupar a ausência com pensamento.

O sujeito buraco faz referência a um objeto que, na transferência, vive-se como inexistente e que gera os buracos de ansiedade . É um objeto sem representação , um buraco na fantasia.

Na situação clínica posso citar um paciente meu em que os pais são inexistentes não ausentes . Esse paciente usa mecanismos defensivos mais primitivos, negação, onipotência e cisão. Nascer do nada é ser nada. Ele não sai do computador. Apenas vem às sessões duas vezes por semana. Conhece computador mas não se conhece. Sua sexualidade é infantil e faz sexo virtualmente.

Atualmente esta usando psicotrópicos; criou e ainda cria historia psiquiátrica estudando sobre elas no Dr. Google. Assim consegue ser. Deixou de ser nada.

DOUTOR

É um desafio contemporâneo. A clínica da Psicanálise hoje exige, com esses pacientes, que se crie a mente ao invés de se analisar os conteúdos.

Além da atenção interessada, da disponibilidade e da observação, o analista não só interpreta e constrói uma história através das hipóteses imaginativas, mas também interrompe repetições, cria a metáfora, nomeia a linguagem pré-verbal, oferece suas funções mentais, sonha para que o paciente acorde para a vida psíquica.

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