Qualquer um de nós acorda na cidade, na sua cidade. E depois então no seu estado e no Brasil. A cidade é a realidade imediata de cada um de nós. Estados e União são ficções jurídicas.

O modelo político brasileiro inverte essa lógica e cidades cada vez mais dependem dos estados e da União. Em todos os sentidos. O resultado disso é perverso com os trabalhadores. E essa perversidade fica mais acentuada no sistema capitalista. União e governos estaduais decidem boa parte das políticas ambientais de cada município brasileiro. A legislação sobre licitações, por exemplo, tem abrangência nacional e afasta as empresas locais de obras públicas, gerando o aparecimento de grandes monstros nos setores de coleta de lixo, transportes coletivos, obras do setor de urbanismo, isso sem que câmaras municipais (adereços desnecessários) possam interferir no processo, mesmo porque lhes cabe a tarefa de propor leis e fiscalizar o Executivo e nem isso fazem.

Submetem-se.

Como não temos uma estrutura do Judiciário, como acontece em vários países, com juizados municipais, ficamos à mercê de um processo lento, moroso e em boa parte corrupto que se define fora dos limites da cidade. Limites e interesses.

Todos nós e cada um de nós nascemos nas cidades. Nas nossas cidades. É ali que além de nascer, crescemos, nos formamos, constituímos família e vendemos a nossa força de trabalho no modelo que temos.

As decisões, em nenhum momento, passam pelo cidadão. Pelo conjunto de cidadãos. Falar em representatividade popular de câmaras municipais é acreditar em conto da Carochinha.

A febre de atrair grandes empresas, como se fossem a solução para todos os problemas, na prática gera distorções absurdas em cada cidade, seja pelos incentivos concedidos (custo transferido ao cidadão), seja pelos privilégios que as colocam acima da lei.

Sem entrar no mérito do sistema capitalista, nas cidades as pequenas e médias empresas são os verdadeiros suportes do emprego e da estabilidade.

Há anos ouvi que um determinado prefeito cuidava em demasia das praças. Eram floridas e limpas. Hoje ouço que as praças estão sujas e abandonadas.

Millôr Fernandes afirmou que quando colocaram a tevê na sala, tiraram a cadeira das portas das casas e mataram a vida, a individualidade.

As redes nacionais de tevê fazem com que os cidadão se vistam rigorosamente iguais em qualquer canto do País e que cheirem o mesmo Avon em sua imensa e esmagadora maioria.

A despersonalização do indivíduo transformado em objeto. A alienação como forma deliberada do capitalismo de gerir esse objeto/trabalhador/mercadoria.

A própria mídia, nas cidades, longe de cumprir qualquer papel informativo, educativo, torce e distorce os fatos ao sabor dos interesses dos chefes políticos, das grandes empresas (às quais muitas vezes se associam), ou são extensões dessas empresas lato senso.

Não há como fugir dessa realidade se não for desconstruída outra realidade. O capitalismo. Nas cidades, nas comunas, é essencial a organização popular, a formação e a consciência políticas como instrumentos para reagir a essa transformação das nossas cidades em grandes currais de interesses políticos e econômicos.

Para que eleger um vereador que não representa coisa alguma, até porque, se assim o quiser, será sempre minoria?

Por que não conselhos comunitários, conselhos de categorias, de setores da administração pública municipal e um grande conselho para deliberar sobre prioridades, sobre tarefas, sobre questões que digam respeito ao município?

Um dos argumentos dos que entendem que câmaras representam o interesse popular está no custo dessa estrutura legislativa em termos de relação com o orçamento. É estupidamente mais caro esse custo, que a participação popular.

É a partir das cidades que vão ser feitas as grandes transformações indispensáveis a que um País como o Brasil mude o seu perfil de entreposto do capital estrangeiro, do capital internacional, do modelo cruel de globalização que temos e que nos sujeita a um papel secundário, por mais que falem em crescimento econômico.

Não temos sequer um carro brasileiro. São todos de montadoras estrangeiras. Abrimos mão da busca de tecnologia em setores essenciais para importá-las. Pouco a pouco vamos regredindo ao século XIX e início do século XX, nos submetendo a situação de exportadores de matérias primas.

Perdemos o direito ao nosso subsolo com as privatizações feitas pelo governo FHC. Com as concessões feitas pelo poder da União e dos estados (no caso de Minas Gerais é um escândalo e só não estão presos os responsáveis por absoluta omissão das autoridades, o que é resultado as políticas de alianças).

Riquezas incomensuráveis como a água são instrumentos de pressão de grandes corporações para que sejam privatizadas.

Que tipo de mecanismo de controle do Poder Público existe de fato em se tratando dos municípios? O Ministério Público? É estadual. A instância última a decidir nunca será a dos cidadãos, ou na própria cidade.

A Constituição de 1988 mudou um determinado princípio. Tínhamos na Carta Magna de 1946 e depois na polaca da ditadura militar, uma única Lei Orgânica para todos os municípios. A de 1988 permitiu a cada município ter sua própria Lei Orgânica, mas dentro de parâmetros pré-estabelecidos pela própria Constituição Federal e pelas constituições estaduais. Mudou pouco, nos foi dada a madeira e a  corda para fizéssemos o nosso próprio patíbulo e forca.

O processo de descaracterização das cidades brasileiras em função de interesses de grandes empresas acobertadas pelos poderes públicos (federal e estaduais) se acentua com tal velocidade que cidades vão aos pouco perdendo o que há de mais essencial em cada uma, a alma, a história.

Somos parte de um todo padronizado ao sabor do sistema capitalista e dentro da lógica perversa e cruel do capitalismo.

O que é um prefeito? Em minha cidade as obras públicas são feitas por empresas de outra cidade, ligadas ao partido do prefeito. Não há discussão sobre a conveniência ou não dessas obras, só promessas de obras quiméricas e um culto acendrado ao automóvel como deus dos tempos contemporâneos. As ruas cheias de carros/poluição e um trânsito gerador de doenças, mortes, mazelas que muitas vezes não percebemos, até pela ufania estúpida de achar que ruas congestionadas são sinais de progresso, ou de riqueza.

As eleições municipais se prestam a um debate amplo sobre a cidade que queremos, o modelo que desejos e ao processo de organização popular para enfrentar os monstros que transformam cidades/lugares de paz, harmonia e progresso segundo as necessidades de todos os seus cidadãos, em fonte de privilégios para elites que dominam e controlam tanto as cidades, como os estados e o País.

Drumond não quis voltar a Itabirito depois de ter visto – ou não ter visto – as montanhas suprimidas pelas mineradoras. De forma irresponsável e criminosa.

Cidades litorâneas em nosso País estão sendo transformadas em gigantescas plataformas para a exploração de petróleo, sem que seus cidadãos possam fazer nada, apenas acreditar que aquilo é progresso e amargar as doenças – em todos os sentidos – desse progresso/privilégio.

Voltar a Idade da Pedra? Nada disso. A Noruega quando descobriu petróleo no Mar do Norte – é uma grande produtora – decidiu explorar a riqueza de forma correta e de um jeito tal que o ambiente não fosse prejudicado e nem as cidades transformadas em monte de entulhos de ferro e concreto. É assim até hoje.

O lixo virou indústria, um grande negócio que sustenta empresas e figuras dos governos estaduais e municipais.

Começam a surgir em todos os pontos do Brasil as praias particulares em flagrante violação ao princípio que praias são públicas. Já existem praias privadas garantidas por forças policiais que servem às elites dominantes.

É o Brasil rumo a um futuro sombrio e sem perspectiva que o capitalismo  propicia.

E é nas cidades que a reação começa. Com organização popular e basta.

Não são reformas que vão mudar esse estado de coisas. Mas mudanças estruturais profundas que não passam por câmaras municipais ou assembléias legislativas, nem por congressos onde deputados e senadores, em sua esmagadora maioria, são eleitos com dinheiro das grandes empresas.

Mas da luta pela organização popular e como conseqüência a reação a esse ufanismo que rua congestionada é sinal de progresso, que a poluição é um preço a ser pago por esse progresso, que novas doenças são conseqüências das quais não se pode fugir, pois são inerentes ao progresso.

Só não se pergunta que mundo legaremos que nos sucederão. E estarão nas nossas cidades.

A especulação imobiliária é uma das grandes responsáveis pelas chamadas tragédias ambientais, pois vai tomando dos trabalhadores espaços que se valorizam na lógica capitalista, afastando-os, empurrando-os para uma periferia onde são tratados ou com a violência policial costumeira,  ou sempre com o descaso do poder público.

É hora de um debate sobre as cidades e eleições municipais, que não vão mudar a realidade, mas são um importante instrumento para isso, para começar a mudar, na tarefa de organizar.

No duro mesmo é luta pela sobrevivência.

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