Ramos ao Passeio Público!

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O escritor cearense Raymundo Netto escreve sobre a reinauguração do Passeio Público e garante: "Eu estava lá, apesar dos pesares e tudo que voces lerão é a mais pura verdade, podem crer!

 

Pintura do teto do Teatro José de Alencar, o sobrado do dr. José Lourenço e as esfinges gêmeas do Passeio Público.

Nem eu acreditei quando recebi um convite para a reinauguração da praça dos Mártires, o Passeio Público de Fortaleza — que Deus me perdoe —, o mais bonito do Brasil!

Precisei ver para crer, e para poder contar depois para aqueles que por lá não estiveram.

Claro, eu entendo que muitos de vocês nunca foram ao Passeio por conta da insegurança e da afamada zona de prostituição. Aliás, esta é a condição de diversas criaturas shoppingueiras que circulavam inconciliáveis por entre as potentes luzes, temporariamente, perfiladas no chão. Ao contrário, é a do amigo Vilemar Costa que encontrei sentado, tranqüilo e sozinho num banco a lembrançar os tempos de menino quando trabalhava ao lado de seu pai no centro da cidade.

O Passeio brilhava, é verdade, mas seu entorno estava escuro e triste, o mar a soluçar, mesmo com o agitado forrobodó que grassava num boteco de clientela engalfinhada na esquina.

Naquele dia, porém, todos acreditavam que estariam seguros, pois algumas autoridades apareceriam por lá. E apareceram mesmo!

A primeira delas que encontrei foi o pintor Raimundo Ramos, ou Ramos Cotôco, como é conhecido. Metido entre um chapéu de palhinha e a fatiota de estopa enfeitada por um escandaloso girassol na lapela, trazia sua paleta mágica de exímio paisagista presa à axila (ele não tem o antebraço direito) e, com o pincel, alvejava as estátuas européias, matizava o verde das folhas das árvores, constelava o céu anil e traçava delicados fios cristalinos d'água no chafariz. Piparoteando como um narigudo fauno de bigodes, gargalhava ao ver o enigmático duelo entre as esfinges gêmeas (na entrada bloqueada do antigo segundo plano do Passeio, hoje, área do quartel): "Eu perguntei primeiro"!, "Não, fui eu"!, "Não foi"!, "Foi, sim"!, "Olha que eu a devoro..."!, "Eu devoro você também!" E por aí vai...

Ramos nunca perdera nenhuma das inaugurações do Passeio, desde a primeira. Aliás, ele não perdia nem os bailes das "Areias", as burletas, as retretas, os passeios de bondes, as serenatas dos beletristas apaixonados que declamavam, nos arrabaldes frios e enluarados, seus mais doridos ais... Ali, parou diante de uma das portas do quiosque restaurado e indagou:

— Será que não sai nenhum "peruzinho sem osso" (aluá com cachaça) para a gente, não?

Nisso, a prefeita chegou com sua comitiva. Algumas pessoas, estranhamente, cumprimentavam-na e saiam furtivamente pelo portão, enquanto ela subia no coreto para iniciar a solenidade. Uníamos-nos a um público minguado, quando ele cochichou ao meu ouvido:

— Mulher bonita é um perigo; mulher feia, um castigo! Eu, pelo menos, acho bonito é o diabo da feia, e não mudo nem sob chicote chiando na peia!

Davi, Lucas, Ramona e Caio, alunos do Colégio Militar (onde estudei por seis anos), subiram para cumprimentar a prefeita. Todos sorrisos, encimados por tapiocas vermelhas...

Diante de uma comentada tentativa de afastar as prostitutas do local, a presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras do Sexo, tomou o microfone e pôs-se a bradar:

— Estão pensando o quê? Prostituta não é vagabunda, não! Vagabundo é o marginal!

As sisudas autoridades que se acotovelavam no coreto, a aplaudiram. Cotôco assentiu:

— Expulsar as pobres mocinhas daqui? Ora, se somente elas não traíram o Passeio! Ao contrário, a burguesia pançuda o abandonou e vem aqui, só hoje, dia de festas, e não mais. Só não digo para atirarem a primeira pedra, por puro medo de quebrarem novamente os lampiões!

O Secretário de Cultura, de posse da altiva palavra, sentenciou exaltado:

— A degradação do centro foi fruto da conspiração da elite burguesa para valorizar os terrenos da Aldeota. É preciso anotar isso!

— O secretário mora no Centro?, perguntou-me. Respondi que não. — Então, é preciso anotar isso também!, fingia estar rabiscando algo na manga do paletó.

— Olha, Raminhos, sejamos justos: reformaram o Sobrado do dr. José Lourenço, um dos poucos sobrados de três andares em Fortaleza; a Secretaria de Cultura do Estado pretende  ocupar os andares do edifício do Cine São Luiz  na praça do Ferreira; o Metrofor não vai mais derrubar e nem mexer com a Estação Ferroviária da Parangaba; estão reformando e restaurando o antigo Hotel do Norte, aqui ao lado; a prefeita pretende reformar e voltar ao Palácio do Bispo,  e tem ainda a promessa do projeto de requalificação urbana da Praia de Iracema...

— Ah, ela prometeu, foi? Meu caro, as mulheres são boas, belas e mimosas, ninguém pode negar. Até mulher de soldado, não esqueço de saudar, mas se é mulher... é bom não confiar!

— Ah, você é do tipo machão, é? — estranhei...

— Sou, sim... e como sou! Aqui mesmo eu já briguei com dez soldados ao mesmo tempo. Botei todos para correr... atrás de mim!, riu. — São bobagens, d'está! Não s'importe, não. — começou a cantarolar:

"Quando é noite de Passeio, vão todos ninguém vai só. Eles vão à Caio Prado* e nós vamos à Mororó*. Vão eles tomando conhaque, sorvetes, e nós, nos tabuleiros, compramos roletes. Estou satisfeito com tais namoradas, que procurem as patroas, pois eu prefiro as criadas!" Não se engane, menino, não importa o que digam, este mundo é mesmo uma paçoca!


(*) O Passeio Público, antigamente, era dividido em três planos: Caio Prado (o que restou e era destinado à elite), Carapinima (para a classe média) e a Mororó (para operários e prostitutas).

Raimundo Ramos Filho (1871/1916) Pintor, poeta e músico publicou, em 1906, "Cantares Bohêmios" (edição fac-similada pelo Museu do Ceará). Foi através de sua arte um irreverente cronista de seu tempo. Teve algumas músicas gravadas pela Casa Edson do Rio de Janeiro.

Algumas das falas do Cotôco são adaptações e transcrições de sua produção.

Raymundo Netto é escritor, autor do romance Um Conto no Passado: cadeiras na calçada, membro do Conselho Editorial de CAOS Portátil – um almanaque de contos. Contato: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

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