
 "Eu assisti de camarote
 o teu fracasso,
 palhaço, palhaço" 
 (B. Lacerda/H. Martins, "Fracasso")
Deu na Folha de S. Paulo que "países  da União Européia articulam um ato de solidariedade à Itália", no bojo da  decisão brasileira de negar a extradição do escritor Cesare Battisti por haver  grande possibilidade de sofrer humilhações e maus tratos naquele país (além,  acrescento eu, de correr risco de ser assassinado, já que um sindicato de  carcereiros o jurou de morte).
 
 O mais interessante na notícia da Folhaé este trecho:
 "O  que mobiliza a Europa não é a decisão em si, mas o descumprimento de um acordo  prévio entre os governos italiano e brasileiro para que a decisão do  ex-presidente Lula não questionasse o Estado de Direito e as instituições da  Itália.
 O acordo foi intermediado por [José] Viegas  [embaixador brasileiro na Itália] diretamente com o próprio Lula. Apesar disso,  o então presidente na última hora se baseou num parecer da AGU (Advocacia-Geral  da União) dizendo que Battisti poderia ser 'submetido a agravamento de sua situação'  em seu país".
 A autora é a colunista Eliane Cantanhêde que, há  quase um ano (16/01/2010), já revelara a existência desse acerto entre os  dois países:
 "O  governo italiano mandou um recado para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva:  seria 'agressivo e deselegante' se ele acatasse a sugestão do Ministério da  Justiça de fundamentar a não extradição (...) no temor de que ele ficaria  sujeito a 'perseguição política' no seu país.
 Na avaliação italiana, isso seria mal visto pelo  governo, pela Justiça e pela opinião pública da Itália...
 Sendo assim, a argumentação de Lula deverá evitar  qualquer tipo de ataque ou suspeição sobre três aspectos: a lei, as  instituições e o Estado Democrático italianos. Deve, portanto, se concentrar no  interesse brasileiro e/ou em 'questões humanitárias'".
 Um dos males desse tipo de jornalismo, lastreado  unicamente naquilo que fontes dos altos escalões sopram no ouvido do(a)  repórter, é que o leitor não tem como averiguar ele mesmo se a informação é  verdadeira ou foi  plantada  para contemplar quaisquer  interesses.
 Um jornalista veterano (meu caso) baseia-se em  indícios como o de que Eliane Cantanhêde, em várias outras situações, deixou  perceber que tinha/tem um informante muito bem posicionado no Ministério da  Defesa -- talvez o próprio ministro Nelson Jobim, a quem ela sempre apóia nos  momentos cruciais.
 Então, levando em conta que suas  informações  de cocheira  costumavam ser confirmadas e  a congruência entre o que ela relatava e o quadro que eu mesmo deduzia, apostei  em que Eliane estivesse certa em janeiro/2010... e aposto que continua certa em  janeiro/2011.
 Os apoiadores de Cesare Battisti suamos sangue  para que, na terceira votação do Supremo Tribunal Federal, a corte não  automatizasse a extradição. Quando fracassou a tentativa dos ministros alinhados com a  posição italiana, de usurparem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a  prerrogativa de dar a última palavra (como sempre se fez no Brasil),  nós  concluímos que o desfecho justo passava a ser apenas questão de tempo.
 Então, fazia todo sentido que os linchadores do  Velho Mundo tivessem chegado à mesma conclusão, de que suas pressões descabidas  e insultuosas de nada mais adiantariam.
 Realmente, baixaram a bola entre janeiro e  dezembro, só reincindindo às vésperas do anúncio da decisão de Lula, quando  incorreram em mais uma grave heresia diplomática: a de se manifestarem sobre uma   presumida intenção presidencial, baseados (segundo eles  mesmos alegaram) no noticiário da imprensa.
 Ora, isto foi altamente impróprio, tanto que lhes  valeu um merecido puxão de orelhas do então chanceler Celso Amorim. No  relacionamento com autoridades de outros países, governos se posicionam sobre  fatos concretos, não sobre projeções midiáticas de medidas futuras.
 Pior ainda é quando tentam ganhar no grito... de  um presidente da República.
 Mais uma gafe da horda berlusconiana, verdadeiros  rinocerontes em loja de cristais, exibindo um primarismo político e falta de  compostura chocantes para um país que, dois milênios atrás, difundia a  civilização no resto do mundo.
 BOBBIO: ITÁLIA ADOTAVA "LEIS  DE EXCEÇÃO"
 Quanto ao descumprimento de parte do acordo com a  Itália -- outro pedido, o de não se criarem embaraços para o premiê Berlusconi  quando de sua visita ao Brasil, foi rigorosamente atendido --, a que se  deveria?
 Ficando no terreno das hipóteses, eu diria que  tantas os italianos fizeram, no curso de sua interferência despropositada e  agressiva num julgamento brasileiro (servilmente consentida pela dupla  direitista Gilmar Mendes/Cezar Peluso), que a Advocacia Geral da União deve ter  aconselhado Lula a lastrear sua decisão num motivo incontestável à luz do tratado  de extradição entre os dois países, de preferência a confiar na boa fé de quem  vinha demonstrando não ter nenhuma..
 "Interesse brasileiro" e/ou  "razões humanitárias" seriam alegações mais frouxas e fáceis de  derrubar, no caso de a Itália continuar tentando servir-se do STF como  cabeça-de-ponte para impor sua vontade ao Brasil.
 Já o motivo alegado está imune a qualquer  contra-ataque jurídico. Um país cujas autoridades dão declarações tão  histéricas e demagógicas quanto as italianas deram a respeito de Battisti, e  cujo serviço secreto trama com mercenários o assassinato de um exilado no  exterior, não oferece mesmo garantia nenhuma à vida e à integridade física e  psicológica do extraditando.
 Na verdade, o Brasil foi até generoso, pois certo  mesmo estava o ex-ministro da Justiça Tarso Genro, ao conceder o refúgio  humanitário a Battisti porque ele não foi sentenciado num verdadeiro  julgamento, mas sim num linchamento togado.
 Face ao desafio das organizações armadas de  esquerda na década de 1970, o Estado italiano reagiu, segundo Genro, "não  só aplicando normas jurídicas em vigor à época, mas também criando 'exceções'  (...) que reduziram prerrogativas de defesa dos acusados de subversão e/ou  ações violentas, inclusive com a instituição da  delação premiada,  da qual se serviu o principal denunciante" de Battisti.
 O ministro brasileiro utilizou uma citação do  maior jurista italiano do século passado, Norberto Bobbio, para caracterizar a  cultura de abusos contra os direitos humanos que prevaleceu durante os  anos  de chumbo:
 “A  magistratura italiana foi então dotada de todo um arsenal de poderes de polícia  e de leis de exceção: a invenção de novos delitos como a ‘associação criminal  terrorista e de subversão da ordem constitucional’ (...) veio se somar e  redobrar as numerosas infrações já existentes – ‘associação subversiva’,  ‘quadrilha armada’, ‘insurreição armada contra os poderes do Estado’ etc. Ora,  esta dilatação da qualificação penal dos fatos garantia toda uma estratégia de  ‘arrastão judiciário’ a permitir o encarceramento com base em simples  hipóteses, e isto para detenções preventivas, permitidas (...) por uma duração  máxima de dez anos e oito meses".
 De um lado, os mais gritantes absurdos jurídicos  -- como essa hipótese kafkiana de se manter um suspeito preso, sem qualquer  condenação, por mais de uma década; e a instituição de leis com efeito  retroativo, a exemplo da que serviu para condenar Battisti.
 Do outro, a tortura grassando solta, como também  destacou Tarso Genro: 
 "Determinadas  medidas de exceção adotadas pela Itália nos 'anos de chumbo' (...) ressoam  ainda hoje nas organizações internacionais que lidam com direitos humanos. A  condenação a determinados procedimentos e penas motivou, de um lado, relatórios  da Anistia Internacional e do Comitê europeu para a prevenção da tortura e das  penas ou tratamentos desumanos ou degradantes e, de outro, a concessão de asilo  político a ativistas italianos em diversos países, inclusive não europeus".
 O motivo maior da decisão soberana do Brasil, ao  salvar Battisti da  vendetta neofascista, foi o de a  Itália estar querendo fazer cumprir uma sentença (já prescrita!) decorrente de  uma farsa jurídica, montada a partir de leis de exceção, de  delatores  premiados  atirando suas culpas nas costas dos companheiros e de  magistrados que engoliam até procurações forjadas para darem aparência de  legalidade à condenação de um réu ausente. E isto num clima de intimidação,  coerção e maus tratos generalizados.
 Berlusconi e sua troupe deveriam é ser-nos gratos  por não termos jogado estas verdades nas suas caras de  buffones...
 * Jornalista, escritor e ex-preso político. http://naufrago-da-utopia.blogspot.com

  




























