Nos últimos dez anos, 23 pessoas sumiram após supostas abordagens da polícia  militar. Durante o regime militar, 15 pessoas desapareceram
 
 Vinte e três pessoas desapareceram em Goiás entre os anos de 2000 e 2010 depois  de abordagens policiais. O número é maior que o de goianos desaparecidos  durante o regime militar no estado, fatos ocorridos entre 1968 e 1979. 
 
 Este é o resultado de uma pesquisa realizada pelo POPULAR junto à Divisão de  Pessoas Desaparecidas (DPD) da Delegacia de Investigações de Homicídios da  Polícia Civil, à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de  Goiás, à Corregedoria da Polícia Militar e ao Centro de Apoio Operacional de  Controle Externo da Atividade Policial, do Ministério Público. 
 Na maioria dos casos, as vítimas foram abordadas em locais públicos, na  presença de várias pessoas, mas as sindicâncias não apresentaram provas  periciais e testemunhas suficientes para garantir a punição dos culpados. 
 O próprio comando da Polícia Militar revelou que investigar crimes cometidos  por policiais é difícil porque as testemunhas temem represálias e preferem o  silêncio. Apesar disto, o comandante da PM, coronel Raimundo Nonato de Araújo  Sobrinho diz que desvios de conduta serão apurados rigorosamente e não serão  tolerados em seu comando.
 “As testemunhas de abordagens policiais que culminam no desaparecimento de  pessoas tem sofrer represálias e não colaboram com as investigações”, contou o  delegado Jorge Moreira da Silva, titular da Delegacia de Homicídios. Segundo  ele, este tipo de investigação é dificultado porque à medida em que o tempo  passa, a probabilidade de se encontrar a vítima viva diminui.
 A maioria dos casos de desaparecimento em Goiás continua sem solução, em fase  de investigação na DPD da Delegacia de Homicídios ou arquivada na Justiça por  falta de provas.
 Enquanto isso, vinte e três famílias clamam por Justiça e se consideram órfãs  do Estado. Algumas são revoltadas com a polícia. Outras ainda possuem a  esperança de verem seus filhos de volta ao lar. Nenhuma teve o direito de  enterrar seus parentes. 
 Este direito também foi negado, durante a ditadura militar, às famílias de  quinze goianos que lutavam pela liberdade e pela democracia no país. Eram  estudantes, intelectuais e militantes políticos presos pelo regime militar e  cujos corpos nunca apareceram. Entre os goianos, apenas um participou e  desapareceu durante a Guerrilha do Araguaia.
 Para as famílias de desaparecidos na guerrilha, uma decisão inédita por crimes  cometidos durante o regime militar condenou o Estado brasileiro a investigar e  a punir os crimes contra os direitos humanos. 
 A decisão, tomada ano passado, foi a Corte Interamericana de Direitos Humanos  da Organização dos Estados Americanos (OEA) e abriu uma discussão sobre a  punição ao Estado quanto ao desaparecimento de pessoas durante o regime militar  e que pode ser estendida, segundo especialistas, a outros casos de violência  estatal, como é o caso dos desaparecidos após abordagens policiais em Goiás.
 A maioria dos desaparecidos no estado entre 2000 e 2010 cometia pequenos  delitos e foram abordados como suspeitos pela Polícia Militar e nunca mais  foram encontrados. Investigações precárias, com poucas provas periciais e  testemunhais não chegaram a punir os autores dos desaparecimentos. 
 Em alguns casos, os procedimentos foram arquivados por falta de provas, o que  aumenta o desespero das famílias das vítimas. Sem os corpos, a lei entende que  não há como provar a materialidade do crime e os criminosos ficam impunes.
 Para o sociólogo Dijaci David de Oliveira, da Universidade Federal de Goiás  (UFG), existem dois tipos de desaparecimentos: o desaparecimento forçado,  resultado de perseguição política, étnica ou de raça por parte do Estado; e o  desaparecimento civil, a de cidadãos que por alguma razão somem. “Esta razão  pode ser a violência institucional, por parte da polícia”, explicou. 
 O que diferencia as duas, entre outras coisas, segundo o sociólogo, é que no  desaparecimento forçado, como é o caso dos desaparecidos políticos do regime  militar, o Estado pode ser responsabilizado por atos praticados por seus  representantes. Ele afirma que ao responsabilizar o Estado, a Justiça prevê  ainda indenização para as famílias dos desaparecidos. 
 Segundo Dijaci de Oliveira, alguns advogados trabalham com a hipótese de que os  desaparecimentos de pessoas após abordagens da polícia também deveriam geram  indenizações, já que se trata de uma violência estatal, mas ainda não há  prerrogativas legais para tal. 
 O sociólogo admite, porém, que se o Estado fosse responsabilizado por tais  crimes, haveria uma possibilidade maior do próprio Estado agir contra os  autores desses delitos. “No desaparecimento civil isso não é possível. Por  enquanto, investigações de desaparecimentos civis são exigidas atualmente pela  lei somente quando a vítima é criança, adolescente ou incapaz”, explica. 
 Nos demais casos, denuncia o sociólogo, a estrutura da polícia é insuficiente e  feita sem um método próprio. “Não há treinamento para a polícia atuar nessa  questão. A polícia não instrui como a família deve agir, não segue um  planejamento, nem mesmo na tabulação das informações”. 
 Diminuir a violência do Estado, por pessoas que o representam, como os policiais,  é um desafio para o novo secretário de Segurança Pública de Goiás, segundo  Dijaci David de Oliveira. 
 O secretário de Segurança Pública, João Furtado disse que além de ser um  desafio, dar resposta às famílias das vítimas de desaparecimento após abordagens  da polícia é uma obrigação. 
 Ele anunciou, entre outras medidas, a reestruturação da Corregedoria Geral da  Secretaria de Segurança Pública. “Não quero emitir aqui juízos de valores  acusando estes policiais, mas as famílias precisam de respostas”.
 Para o professor e advogado Júlio Moreira, membro da Associação Brasileira dos  Advogados do Povo (Abrapo), é impressionante o número de agentes policiais  envolvidos em desaparecimentos de pessoas atualmente. 
 “Isso mostra que há uma política de Estado na questão dos desaparecimentos.  Quando o Estado não exerce com eficácia seu dever de solucionar os casos, se  torna cúmplice daqueles crimes”, sentencia. 
 Segundo ele, o desaparecimento de pessoas acaba fazendo parte de uma política  de repressão como esquadrões da morte ou grupo paramilitares, em que há estrita  conexão entre os crimes e a criminalização da pobreza.
 Júlio Moreira explica que os desaparecimentos de pessoas são consequência das  execuções sumárias. “As pessoas não desaparecem. O que acontece é a ocultação  do cadáver por aqueles que praticam execuções sumárias”. 
 Para o professor e advogado, essas práticas expressam o desmoronamento do  Estado de Direito. “Executa-se a pena de morte sem qualquer julgamento oficial  de pessoas suspeitas de cometerem delitos”.
 
 Entrevista Júlio Moreira
 
 Professor universitário e advogado, Júlio Moreira é membro da Associação  Brasileira dos Advogados do Povo (Abrapo). Em entrevista ao POPULAR, ele afirma  que o desaparecimento de pessoas após abordagens policiais nada mais é que  ocultação de cadáveres após execuções sumárias. Diz ainda que o Estado deve ser  responsabilizado por estes desaparecimentos e que as famílias são vítimas de  tortura física e psicológica ao terem seus entes arrancados do seio familiar.
 O Estado pode ser responsabilizado pelo desaparecimento de pessoas após  abordagens policiais?
 Assim como nos anos da ditadura militar, hoje o número de agentes  policiais envolvidos em desaparecimento de pessoas é impressionante. Isso  mostra que há uma política de Estado na questão dos desaparecimentos. Quando o  Estado não exerce com eficácia seu dever de solucionar os casos, se torna  cúmplice daqueles crimes. Os desaparecimentos de pessoas acabam fazendo parte  de uma política de repressão muito usada em outros países, que são os  paramilitares ou esquadrões da morte, em estrita conexão com a criminalização  da pobreza.
Como assim?
 Os pobres, especialmente os jovens da periferia, deixam de ser vistos  como um problema social e passam a ser rechaçados como bandidos incuráveis. O  Estado não oferece nenhuma perspectiva de vida para essas pessoas, mas nos  noticiários sensacionalistas não faltam apelos para a execução sumária de  pessoas supostamente envolvidas no tráfico de drogas. Aqueles que passam como  “traficantes” não são mais que “comerciantes varejistas de drogas”, na  expressão usada pela socióloga Vera Malaguti Batista. O discurso de  criminalização nunca toca nos elos superiores do negócio das drogas, onde estão  pessoas acima de qualquer suspeita.
 E que relação essa criminalização da pobreza tem com os  desaparecimentos de pessoas? Os desaparecimentos de pessoas são  consequência das execuções sumárias. As pessoas não “desaparecem”. O que  acontece é a ocultação do cadáver por aqueles que praticam execuções sumárias.  E essas práticas expressam o desmoronamento do Estado de Direito: executa-se a  pena de morte sem qualquer julgamente oficial para pessoas suspeitas de  cometerem delitos. Isso também tem acontecido no Rio de Janeiro. A Associação  Juízes para a Democracia se pronunciou sobre esses casos afirmando que “o  Estado, ao violar a ordem constitucional, com a defesa pública de execuções  sumárias por membros das forças de segurança, a invasão de domicílios e a  prisão para averiguação de cidadãos pobres perde a superioridade ética que o  distingue do criminoso”. 
 
 Como o senhor analisa investigações sobre os crimes de  desaparecimento de pessoas no estado?
 No Estado de Goiás, o corporativismo é um grande problema para a  solução dos casos de desaparecimento, e isso tem de acabar. As investigações  ficam restritas aos órgãos internos das próprias corporações policiais das  quais fazem parte os suspeitos de envolvimento nos crimes. É um absurdo que o  Ministério Público e demais órgãos do governo concordem com isso. A população e  as famílias das vítimas precisam exercer pressão constante e não deixar que os  casos caiam no esquecimento. O que se verifica é que as investigações caminham  quando há grande atenção da mídia e da sociedade, e que a impunidade se  sobrepõe conforme os casos vão caindo no esquecimento.
 
 As famílias podem ser consideradas vítimas de tortura também?
 Os familiares das pessoas desaparecidas são vítimas de violações que  vão desde a falta de informação até ameaças e torturas psicológicas ou  físicas.No começo do mês de dezembro de 2010, o Brasil foi condenado pela Corte  Interamericana pelo desaparecimento forçado de pessoas no caso Guerrilha do  Araguaia, donde se concluiu que “os crimes de desaparecimento forçado, de execução  sumária extrajudicial e de tortura perpetrados sistematicamente pelo Estado  para reprimir a Guerrilha do Araguaia são exemplos acabados de crime de  lesa-humanidade”. Os efeitos dessa decisão vão além do caso específico,  importando que o Estado brasileiro passe a adotar uma postura efetiva na  prevenção e punição para o crime de desaparecimento de pessoas. A sentença da  Corte afirma que os familiares das vítimas de desaparecimentos são violados em  sua integridade pessoal.
 

 
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  




























